VozesA cidade nunca existiu Carlos Morais José - 20 Dez 2019 [dropcap]E[/dropcap]is a mulher entregue, cercada, enrugada de prazer. Cidade da sorte, sem norte, infectada, julgada, repudiada. E ainda assim, para surpresa geral da multidão, verdejam lótus nos explícitos pântanos e crianças sossegam as mães num estertor. Não há amor porque o amor nunca existiu. Só a raiva e o descanso. Só a raiva de não ter ou o descanso de sossegar a cabeça num seio farto e esquivo como as ruas de uma cidade aparentemente real. Como se fosse assim em todo o lado. Ou não houvesse mais lado nenhum porque todo o mundo se desvanece e perde importância com a minha presença em ti. Entrei na cidade sem a precaução do preservativo. Não olhei a males congénitos nem a seus recentes vícios. Fui certamente contagiado mas o corpo criou defesas que a mente ainda hoje não consegue entender. Ou sequer aceitar. Sobrevivi. No sentido forte da palavra. Foi há 20 anos. E eu nunca fui tanto eu como aquilo que hoje sou. Já a cidade nunca existiu.