h | Artes, Letras e IdeiasUm joker no baralho José Navarro de Andrade - 8 Nov 2019 [dropcap]U[/dropcap]ma personagem é um Golem, figura de barro inerte na qual foi insuflado o sopro de vida. Tudo o que uma personagem diz ou faz foi pensado e escrito por alguém. Se a vivificação tiver êxito acreditaremos nela e na sua realidade. Em 1959, o escândalo. Jean-Luc Godard estreia “A bout de soufflé.” Nele Belmondo e Seberg deambulam ao deus dará daqui práli, desconversam soltos e frívolos. Porque agem assim? Porque lhes apetece; porque fazem amor? Porque se amam. Tal forma de entregar as personagens, sem intenções nem razões era grande provocação ao cinema francês em vigor, o “cinéma du papa.” Nesse mesmo ano Howard Hawks acrescenta um pináculo à sua cordilheira com “Rio Bravo.” Um xerife, um bêbado, um velho coxo e um jovem temerário defendem uma cidadezinha de um poderoso vilão. Depressa depreendemos que não os move o amor à lei e à ordem, nem um sentido de justiça, menos ainda uma expectativa de redenção. O que os faz padecer cerco tão adverso talvez se deva à casmurrice, a uma vontade fátua de fazer peito ao destino com traços de fatalismo. Em comum além do ano os filmes de Hawks e Godard, além do ano, têm o modo como providenciam as personagens. As personagens são aquilo que fazem – é este o génio de Hawks – não se revelam nem se radicam. Às mãos de Godard movem-se e falam e nada mais do que isso. Não há cá inconscientes, subconscientes, devassas de alma, pressupostos, pretextos, alibis, recriminações, queixumes ou o diabo a sete. Se percebeste, percebeste, se não percebeste, tivesses percebido. É assim que é tratado o espectador. Claro que ser tratado assim nos dá um prazer infinito. Basta um relance pelos reclames e cartazes de “Joker” para se inferir ao que vem: assistiremos à composição de uma personagem já conhecida é já várias vezes interpretada. É uma aposta cujo formalismo não infirma de todo as virtualidades do material. O resultado, contudo, mais do que deplorável é exemplar do primarismo que esta cangalhada dos Marvels ou DCs inoculou no cinema. Dispondo-se a uma versão revisionista das pueris figurinhas dos comics, ambicionando a integridade e nobreza das personagens dramáticas, “Joker” retrocede até às fórmulas do “cinéma du papa” – esse que Godard afrontou em nome de pragmáticos como Hawks – entufado de grandes temas e aludindo às magnas questões, um cinema sisudo e pomposo, esteticamente administrativo, muito toucado mas cheio de caspa, soturno pretendendo a gravidade, taciturno para se fazer sério. Em Joker é-nos oferecida a criação de uma personagem? Queres agenciar complexidade numa personagem? Pois nada… Levas mas é com uma aula ilustrada de introdução à sociologia subordinada ao tema “os efeitos nefastos da sociedade contemporânea na psicologia das vítimas.” Numa carambola sem falhar uma tabela o coitado do Joker é recipiente de todas as malfeitorias proporcionadas pela sociedade contemporânea: a bastardia e a disfunção familiar, os maus tratos infantis, a violência urbana, o preconceito contra “desafiados funcionais”, a poluição, a sobranceria dos ricos, a selva de cimento cinzento, a indiferença social, a ineficácia da burocracia, o abuso policial, o sensacionalismo dos media, enfim, crueldade passivo-agressiva do xixtema. Ficaram só por aludir os efeitos nefastos da ingestão de carnes vermelhas e se Greta Thunberg tivesse despontado 2 ou 3 anos antes os argumentistas ainda iriam a tempo de acrescentar as consequências das alterações climatéricas – foi pena… Caso a consciência do espectador careça de simbólico, lá está a alegoria literalmente pedestre da escada íngreme. Estas pendências recalcam-se na personagem com recurso ao óbvio expediente da psicologia. E não havendo paciência para o método de Lee Strasberg – que também, indiferente aos estigmas da culpa, menos elucidava do que desvendava – abrevia-se a questão com uma psicopatia, infunde-se neurose na personagem e em vez do mirabolante overacting de Jack Nicholson a pedido do Joker – não há Joker como este, essa é que é essa… – temos o Joker a fazer de Joaquin Phoenix durante duas penosas horas. O grotesco é difícil. Tudo isto são dedos espetados nos nossos olhos sem a menor subtileza ou sombra de ironia. O horror de Joker à inteligência e à autonomia do espectador é maravilhosamente especificado num momento exemplar: desesperado o protagonista entra em casa da namorada e senta-se no sofá. Quando esta o vê, na exclamação de susto e em duas ou três frases sofreadas, percebemos de repente que a suposta relação entre eles fora apenas imaginada. De imediato o realizador desfecha uma sequência a recapitular todos os planos que os vimos juntos, montados e paralelo com o que “na realidade” sucedeu – ele esteve sempre sozinho. Percebeste? Percebeste? Não poderia Joker prescindir de envidar a sua validação cinematográfica polvilhando-se de citações, para gáudio dos cinéfilos e seus jogos masturbatórios. O De Niro de “King of comedy” agora no “lado de lá” a entrevistar um aprendiz de Travis Bicker? Percebeste, não percebeste? Como não haveria Scorsese de se ter agastado com o embuste… Há mais coisinhas destas, procura-as tu se tiveres vagar para isso. Joker é o exemplo terminal, ou apenas mais recente, de um cinema superficial com película de substantivo, invertendo e tornado inertes os pólos que davam vigor ao cinema clássico. E não pensem que é só no cinema americano.