h | Artes, Letras e IdeiasOlhar de Eros António de Castro Caeiro - 8 Nov 2019 [dropcap]E[/dropcap]ros é uma palavra com uma longa tradição. O seu significado é múltiplo. O adjectivo “erótico” ganhou ascendente sobre o substantivo eros, sobretudo nos tempos modernos nas línguas contemporâneas. A sua tradução habitual é amor, embora quem use a palavra com consciência tenha de advertir que não se trata exactamente da mesma coisa. O amor tal como o adjectivo erótico tem conotações que na verdade afunilam o seu sentido de origem. Se com o “erótico” pensamos num determinado modo como alguém surge ao olhar cobiçoso e luxuriante de outrem, com o “amor” pensamos na relação romântica entre dois seres humanos ou na relação religiosa estudada pela teologia entre um ser humano e Deus, seja ela simétrica ou assimétrica. Eros para Platão diz-se de diversas maneiras, mas sublinhe-se a sua característica divina. Eros é um daimon, uma divindade, um deus, talvez menor. Eros é uma entidade pessoal. Eros não é já um ser humano. Não é ainda Deus. Tem uma identidade que começa por ser referida negativamente. Diz Platão no Banquete tratar-se de um ente intermédio (metaxy) ou neutro (do latim: nem uma coisa nem outra). Eros é caracterizado por não ser ignorante mas também não ser sábio, existe entre a presença de qualificações superlativas positivas, determinadas por serem o máximo com que essas qualidades podem existir e as qualificações superlativas também mas negativas: o pior de tudo com que uma qualidade pode ganhar consistência. O mínimo não tende para a inexistência. O que não existe e não é não é como se nada fosse, não deixa de surtir efeito nem de ter consequências nas vidas humanas. O espantoso para o pensador Platão é que o que não é, não está disponível nem presente, o que não é real: existe com um eficácia, damos conta da sua existência. Quando eros “encosta” num ser humano não o torna susceptível de amor ao olhar de outrem assim sem mais. Quando damos conta da presença de eros nas nossas vidas, sem dúvida no modo como alguém nos surge pela primeira vez nas nossas vidas, o outro é o amor, a pessoa amada, por quem nos apaixonamos, por quem caímos. Mas para Platão erôs é mais do que o modo como alguém nos aparece e o modo como transforma toda a nossa vida e se houver um encontro feliz de amor, há a mudança da vida de duas pessoas pelo menos. Eros, contudo, é o nome para o sentido da existência. É o que mexe connosco, o que nos põe a mexer, o que nos motiva, mobiliza, entusiasma, faz ser, quando não queremos, faz fazer coisas a contra gosto mas pela força da vontade, e claro faz-nos fazer o que não queremos por disciplina. Eros faz “fazer”, faz “ser”. É como se a agenda que nos obriga cumprir os mínimos da sobrevivência para assegurar a existência: comer, beber, dormir, e depois ajudar a satisfazer os apetites que temos, as vontades que nos dão, tal como o cumprimento do dever, a observação do escrúpulo religioso para quem o tiver ou da consciência que todos temos, o gosto que temos na experiência estética, a nossa curiosidade científica ou de que natureza for, tudo é um projecto para nós da presença em nós de eros. Pode ser preenchido como pode ser decepcionado, pode até parecer que não está presente em nós, mas nós acordamos com uma relação com este móbil, este motor, propulsor que nos faz acordar de manhã e perceber em antecipação o que se vai passar nesse dia. Mesmo que seja sempre o mesmo, vamos ter de nos levantar, quando não apetece e quando apetece, fazer a higiene matinal, tomar o pequeno almoço, vestir-nos, em suma arranjar-nos para sair, ir trabalhar, exercer funções, realizar tarefas, etc., etc.. O nosso mundo interior está exposto à pressão de eros que nos faz querer ouvir música no rádio, expõe a memórias de um passado longínquo ou não deixa esquecer o que temos para fazer nas próximas semanas, obriga a pensar em alguém com gosto ou preocupação. O mundo em geral no trânsito das horas está submetido ao projecto de um eros cósmico que faz passar as horas dos dias, os dias das semanas, as semanas dos meses, os meses dos anos, as estações do ano, as épocas da vida. O erôs não é só interior, nem só exterior, não vem de fora para dentro nem de dentro para fora, não é importado nem é exportado, não é pessoal nem impessoal. E, por outro lado, é tudo isso. Eros submete-nos a uma pressão contínua, ainda que não se declare a não ser quando sentimos um entusiasmo enorme pelas presenças nas nossas vidas que nos acendem, atraem, chamam, sendo essas presenças as actividades a que nos dedicamos ou as pessoas que amamos, as nossas coisas, portanto, e as nossas pessoas. Eros exerce sobre nós um fascínio tal que queremos mudar pela sua presença nas nossas vidas. Queremos ir no seu encalce para sermos diferentes, porque nós sem amor somos diferentes de nós com amor, nós sem entusiasmo, quando tudo farta e nada motiva, somos completamente diferentes de quando sentimos nascer e crescer em nós o entusiasmo com um sentimento que se nutre por alguém ou com qualquer actividade a que queremos dedicar-nos, a aprender música ou uma arte marcial. Se achamos que vamos atrás do prejuízo porque não temos o que queríamos ter, não somos como gostaríamos de ser, por outro lado, eros está a actuar desde sempre já sobre as nossas vidas, a projectar-se no mundo e na nossa vida através de nós. Sem dúvida que tem o sex appeal que nos leva a antecipar com entusiasmo e encantamento como será quando acontecer. Esta ideia do ser do erôs é fascinante e também decepciona, frustra, mata pela sua ausência. Vivemos sempre com erôs seja ele preenchido e sempre cada vez mais e maior ou sejamos nós esvaziados dele, sintamos que é cada vez menos e menor. Para Platão Eros era o desejo de imortalidade. Imortalidade não quer dizer a duração do tempo tão longa como a eternidade e que nunca acaba. Pode ser tremendo e aborrecer-nos mortalmente. Como se pode querer para sempre o que é mau? Não acabará por fartar o que é bom, não por ser bom, mas porque tudo o que é para sempre cansa? Eros tem de ter em vista outro conceito de imortalidade que redimensiona as pequenas coisas da vida, os pormenores, o que é insignificante, tudo simplesmente. Como será possível?