h | Artes, Letras e IdeiasO paradoxo sorites António de Castro Caeiro - 16 Ago 2019 [dropcap]S[/dropcap]e uma multidão de gente for subtraída de uma pessoa, quando é que deixa de ser uma multidão parar passar a ser um conjunto de pessoas, algumas pessoas, poucas pessoas, etc. Hoje estive numa praia onde estive quando tinha seis anos. Uma família a sul. Alguém atira uma bola ao rio. A corrente leva a bola a uma velocidade estonteante. Era a mãe, o pai e o mano, sobrevivente a uma doença mortal. A bola é levada para a foz. Mal podia eu saber que era uma metáfora viva da vida. E estamos a ir todos na corrente do rio para o mar. Esta mesma praia é onde estou. Não está lá ninguém que eu conheça. Há o mesmo bar de praia de que me lembro. Era só madeira outrora. A madeira apodreceu. Hoje, é uma coisa moderna com pessoas que não sabem da bola nem do rio. O rio é sempre diferente. Quando a maré sobe, quando faz frio, quando chove, quando faz sol. O rio vai para o mar. É por isso que nasce. É para ir ter com o Atlântico. E esta multidão é o quê? Os antigos cépticos tinham vários paradoxos. Quanto se perde de cabelo para se ser considerado careca? Quantos grãos de areia fazem uma praia? Há uma multidão sem uma pessoa. Quantas pessoas fazem uma multidão? Quantas pessoas estão ausentes para se dizer que a praia está vazia? Nós estamos lá a olhar para a praia, quando é inverno e não há ninguém, só o nosso ponto de vista. Mas há também uma multidão sem ti. Nada compensa a tua ausência. Nada. Olho para a praia cheia de gente e não estás lá, nem a bola, nem a maré a vazar em direcção ao rio. Pediste-me que te espalhasse as cinzas onde olhavas o horizonte. Ainda não o fiz. Estás aqui connosco, mãe e eu. o que é uma multidão de gente sem ti? Só eu dou por isso. Há uma multidão sem uma pessoa que continua uma multidão mas é a abominação da desolação. Só tu enchias a praia. A praia vista sem ti e praia vista contigo é completamente diferente. Não há praia sem uma pessoa. A praia sem ti é uma lente sem objecto. E quando a praia está no inverno estar e não estar, aparecer e desparecer é diferente de tudo. A vivência sem prendimento e com a entrega que a infância representava a vida que estava para ser e que foi. Agora não se está bem lá sem se perguntar se é ou não a última vez. A primeira até à última vez da visita é sempre só nós lá, num só sítio, até que nós a encerramos e fechamos para sempre. Uma praia sem ti é diferente de uma praia contigo. Agora, estás lá, com todos os teus jornais, todos os teus dias, os almoços, a política, os amigos que também se foram, os teus filhos que estão velhos. Há uma família que vai a uma praia pela primeira de todas as vezes da tua vida. A bola chutada vai para o rio, o rio leva-a para o Atlântico. Ninguém a salva. Ninguém nos salva. O rio é diferente sempre todos os dias, maré que enche e maré que vaza. Onde estás? Quantas pessoas saem para fazer uma praia vazia? Olho para todos os grãos de areia, para todas as gotas do rio que é diferente à superfície e no seu fundo. Não te encontro. Não vives já, mas continuas a existir, moreno, a beber vinho tinto, a falar política, a ter misericórdia pelos pobres. Encontrava-te sempre sentado, a escutar rádio, a ler o jornal. Encontro-te ainda sempre, porque não sairás de mim nunca.