Absurdez

[dropcap]P[/dropcap]or aquela é que ninguém estava espera, a de o mariola sacar da naifa e dar a guardá-la no desprevenindo entrecosto de Samuel, o próprio do Beckett. Havia-lhe saído o sujeito ao caminho certa noite que o escritor vinha por ali com uns amigos; primeiro rogou por umas moedas e depois ofereceu fêmea por uns trocos. Como do nada até ao fim do mundo é questão de se estar para aí virado, o gajo despeitou-se fosse com o descaso fosse com os vagares embriagados de Beckett, e já de caldo entornado usou então da navalha sem aviso. Não tivesse isto sucedido em Janeiro, não envergasse a vítima um sobretudo de boa e pesada fazenda e a lâmina em vez de apenas romper a pleura ter-se-ia afundado livremente até ao coração.

Convalesceu o irlandês no Hospital de Broussais, ao 14º arrondissement, enquanto a ocorrência seguiu os seus trâmites judiciais. No dia do julgamento, com a impassibilidade que a magistratura adora pôr no seu expediente, o polícia de plantão indicou a Beckett que aguardasse à entrada na sala de audiências num banco corrido de madeira onde já o faquista refastelava as nalgas. Não havendo espírito literário sem interrogação ou então por mera curiosidade humana, Beckett indagou-o acerca dos motivos do seu acto. “Je ne sais pas”, retorquiu, encolhendo os ombros com a nonchalance que só os franceses conseguem exibir sem hipocrisia.

Que o tivesse perpetrado assim sem mais nem menos já seria intrigante, mas que um proxeneta se chamasse Prudent, nome de pia baptismal e não alcunha e em cúmulo aposto a um capaz de atalhar à chinada tão vagas razões, eis o que dizem ter sido o catalisador da vocação de Beckett pelo absurdo.

Esta rixa de viela deu-se em 1938. Adensa e atesta a extrema impressão que o lance produziu em Beckett o facto de na sua posterior biografia se contarem outros factos e feitos não menos críticos e decerto bem mais empolgantes, como a sua participação na Resistência Francesa contra o invasor nazi, tendo estado um par de vezes à beira de ser capturado pela Gestapo.

A ideia de absurdo não assoma quando ao nosso entendimento escapa o sentido da natureza ou daquilo a que abreviadamente se chama de realidade. Isso seria apenas da ordem do desconhecimento ou da ignorância. O absurdo acontece quando o incompreensível ofende ou contradiz a regularidade a que as coisas nos haviam habituado, por exemplo a pedestre relação causa-efeito. Contudo, o absurdo não é uma partida pregada pela natureza ou pela realidade, porque ambas não prestam contas a ninguém. Mas mais do que um fenómeno confinado à subjectividade, o absurdo é o transplante do paradoxo para o campo existencial. O seja, o absurdo é um elemento da condição humana.

Como tudo nos pede uma explicação e como, se a isso estivermos deveras decididos, acabaremos sempre por encontra-la, o absurdo depende por inteiro do estado do nosso conhecimento e, sobretudo, no modo como experienciamos esse conhecimento. Ao mais erudito dos sábios medievais seria impossível explicar o que é a electricidade e haverá boas razões para crer que Descartes não ficaria muito convencido se lhe expusessem a física quântica.

“Pensa, porco!” Grita Pozzo. Ao que Lucky, incapaz de pensar se não lhe puserem um chapéu, jorra um magma de palavras criando a ilusão de nele se arrastarem pedregulhos com vaga forma de filosofia, resíduos de conceitos, estilhaços de razão. É pois isto a metafísica – um arrazoado sem conexão fora de si mesmo, pendurado em formas simbólicas sobre nada e acerca de tudo. Um funâmbulo às cegas a discorrer desequilibradamente sobre o que não vê.

Disto pode-se inferir que o conceito de absurdo se nega a si mesmo, ou seja, é ele próprio absurdo. Seria aliás absurdo concluir esta digressão doutra maneira.

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