h | Artes, Letras e IdeiasDiários António de Castro Caeiro - 26 Abr 20191 Mai 2019 Que dias há que na alma me tem posto Um não sei quê, que nasce não sei onde, Vem não sei como, e dói não sei porquê. Camões. Não Pode Tirar-me as Esperanças. In “Sonetos” [dropcap]A[/dropcap] inquietação provoca a insónia. Noite longa não dormida. Depois, ao longo do dia: inquietação, ansiedade, angústia, preocupação. O corpo tenso, enervado. Não se consegue estar sentado. Tenta-se ler em voz alta pela casa toda. Dá-se um esforço tremendo à procura da concentração. Que métodos os monges Zen terão desenvolvido para poderem concentrar-se? Perda de acuidade de atenção. De novo a tensão. Não há nunca nestes dias relaxamento descontraído. Um diário pessoal não pode ser apenas uma agenda das coisas que têm de ser tratadas pela nossa acção nem uma acta de coisas tratadas. Uma agenda pessoal virtual ou no papel não tem apontadas as nossas maiores preocupações. É para não esquecer, claro, que apontamos na agenda o que há para fazer: marcações de consultas, encontros mais variados profissionais e pessoais. Não marcamos tudo. De resto, podemos falhar a encontros ou consultas que estão marcados na agenda, como podemos não nos esquecer do que não marcamos, porque está tão presente que não carece de marcação. Há uma agenda pessoal a partir da qual, depois há agendas virtuais e físicas. O lance diário traz consigo as preocupações presentes que vêm dos últimos dias ou das últimas semanas, meses ou até anos e décadas do passado. Distribuem-se não apenas num só dia, mas por vários dias, semanas, meses, semestres ou como podemos organizar o nosso ano, que pode ser lectivo, civil ou religioso ou só assim como quem não quer a coisa. Podemos também não ter nada para fazer e ter dias de lazer, fins-de-semana prolongados, feriados ou férias. Durante esses períodos de tempo da vida há uma espécie de suspensão de quem somos enquanto somos o que fazemos. Há um intervalo de tempo, uma pausa, uma paragem em que o dia-a-dia vem da agenda do tempo de lazer. Ir às compras, ir à praia, ir para o campo, ler, ouvir música, ver o pôr do sol. Diferente de exercer funções ou cargos, realizar tarefas, cumprir prazos. Mas o lance diário começou antes do próprio dia ou da hora quando começam as consultas ou os encontros ou as outras marcações. Tudo começa antes do seu início com uma antecipação que pode ser de meses, que é quando marcamos as coisas, às vezes só na nossa cabeça. A lembrança é para memória futura. É agora que marco coisas para a tarde, quando é de manhã, para amanhã, fim de semana desta semana ou para as próprias semanas. Hoje, está já a ser vivido como o resultado de intenções gizadas que se projectaram para um futuro que agora é realizado. Somos o resultado do projecto de intenções que nos lançam para o dia de hoje, que começou lento ou rápido, com o pequeno almoço, a vinda para o local de trabalho, o início do exercício de funções. Trazemos connosco também o resultado por mais provisório que seja dos últimos meses: pessoas com quem vivemos e existimos, trabalho realizado. Hoje é já diferente do dia do calendário no ano passado, eventualmente no mesmo local e à mesma hora. Hoje é o resultado de um lance que se pode ter aberto num qualquer dia de Verão do ano passado ou de há muitos anos, muitas décadas, antes mesmo de compreendermos bem quem somos ou o que fazemos ou quais são as verdadeiras intenções da vida para nós. Hoje, abre também um futuro intencional que configura várias possibilidades ainda só em intenção, mas já com a abertura à possibilidade real e efectiva do possível que é possível, diferente de um sonho que se desfaça como uma vaga apaga desenhos na areia. O nosso diário teria de ser de uma natureza diferente de uma mera recensão das coisas que fizemos ou que poderíamos ter feito. Encontros a que fomos. Encontros a que faltamos. Consultas marcadas e em que estivemos presentes ou as que faltamos. Aulas dadas e tidas. Aulas faltadas. Espectáculos a que assistimos e aqueles a que não assistimos. Mas a nossa agenda teria de ser no condicional. O que poderíamos ter feito e não fizemos. O que não poderíamos ter feito e foi o que fizemos. O que poderíamos ter sido e não fomos o que não deveríamos ter sido e acabamos por ser. A possibilidade de inflexão. A possível reversão do que parece estar destinado e, tão petrificado que não muda nunca. É como se houvesse uma intenção por vida. Cada pessoa tem de lidar com a sua aspiração. Somos o desejo que é como quem diz a falta que sentimos de algo ou de alguém. Somos o desejo de nós próprios que é como quem, então, pode dizer a falta que sentimos de nós próprios, a carestia de um si que não foi e que não pode ser já ou ainda pode ser. Cada pessoa é esse trajecto de uma estrela cadente, como dizia Platão, atirada para o cimo em direcção ao alto e a riscar o céu. A antecipação do que está para ser e por ser e a que damos início não é nossa por assim dizer. Desde sempre já lidamos com essa antecipação. A antecipação que está envolvida com desejo, ânsia, intenção, esperança, futuro é excêntrica. É ela que nos visa a nós. Nós somos concebidos no anterior desta concepção prévia e meramente formal de que há um futuro e que temos de ser esse futuro, num ter de fazer, ter de agir, ter de ser. A antecipação usa-nos para se expressar através de nós no mundo, na vida, com outros, connosco. A cada instante exprimimos sempre na coreografia da existência a nossa relação intrínseca com a intenção constitutiva do nosso ponto de vista e estamos já a caminho, na direcção do que achamos é nós próprios, num modo de ser que nos é de feição, a chegar até nós. Também, é certo, sentimos que estamos puxados como pela corrente forte de um rio na direcção inversa àquela para que queríamos ir e que nos esforçamos por atingir. A antecipação preocupa não por este ou aquele conteúdo que exerce pressão sobre nós, as ralações do dia a dia, a preocupação com os outros de quem cuidados, nós que somos preocupação para os outros e que nos preocupamos com o ser uma preocupação para os outros. A antecipação não é apenas para o dia de hoje ou para o curto ou médio prazo, nem é para o longo, longuíssimo prazo, do que está para haver sem sequer percebermos bem como, porque se encontra na linha do horizonte do tempo para lá do qual não haverá mais tempo. A antecipação que preocupa arromba essa linha do horizonte, esse espaço temporal abobado, catapulta-nos para um tempo a haver sem que percebamos bem como será a sua vivência, algo de para sempre. Podemos esquecer-nos das nossas acções, não nos lembrarmos do que fizemos no dia de hoje, mas cada uma das nossas acções é inscrita, quando feita, no tempo passado em que coincidimos com a eternidade do passado e, por isso, é já indelevelmente conteúdo da vida, do mundo. Cada uma das nossas acções inscreve um conteúdo no presente que não será também nunca apagado da nossa vida. Requereu tempo para ser, para cair no mundo, para ser conteúdo da minha vida, intersectar vidas que connosco fazem a trama do tempo.