Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasFronteiras IV. Corpo e alma. António de Castro Caeiro - 23 Abr 2019 [dropcap]A[/dropcap] psique afecta o sôma. O sôma afecta a psique. A afecção é enunciável na voz passiva. Ser e estar afectado por qualquer coisa que aconteceu, por X. X é o agente da passiva. Este esquema serve para o corpo e para a alma. Mas o corpo pode ficar afectado por qualquer coisa que lhe acontece. Por exemplo, a respeito da temperatura: sofre com o calor ou sofre com o frio. Mergulhamos com calor na praia. Entramos no sauna no inverno, com frio. Pode ser conteúdos higrográficos: a humidade ou o clima seco, uma casa húmida ou uma casa seca. Por outro lado, podemos sofrer com quartos escuros. A escuridão na infância metia medo, fazia sentir o mundo na sua indefinição. Sofremos de fotofobia: a luz crua do meio-dia. Mas há uma relação entre estados mentais e o corpo. A coreografia do corpo de quem não tem confiança e é tímido ou está vulnerável é diferente da coreografia do corpo e da fácies de quem tem confiança. Há uma relação entre a alma e o exterior como há entre corpo e exterior. Reagimos a espaços fechados ou extensos, ao clima mental e meteorológico, a atmosferas física e mentalmente. Podemos gostar do deserto ou achá-lo desolador, como podemos expandir o olhar pelo mar com entusiasmo e fora de si ou então achá-lo a solidão inabitável de um elemento alienador de nós próprios. Há, assim, relações no próprio edifício: descemos da cabeça até aos genitais, estômago, pulmões e coração. Subimos desses terminais até à cabeça. Os orifícios podem ter funções várias ou só funcionais ou eróticas, o que permite compreender funções diferentes e sintéticas entre si. Há uma relação psico-somática que permite compreender a correlação entre o que acontece anatomicamente no corpo, mas também com a nossa percepção do corpo, se estamos gordos ou magros, com bom ou mau aspecto, com energia ou sem ela, treinados ou não, em boa ou má forma. Esta avaliação ultrapassa o conteúdo anatómico. Pensa uma relação com o corpo que pode ser estética mas é desde sempre já uma avaliação do bem estar ou do mal estar com que nos sentimos na nossa pele. Podemos fazer qualquer coisa para alterar o estado do corpo e assim poder estar melhor na nossa pele. Por outro lado, percebemos que também podemos mudar de hábitos de vida, alimentares ou modos de vida. Nesse caso percebemos a diferença que há entre não praticar desporto e praticar desporto, como nos encontramos depois de vir ao treino a que não queríamos ter ido e como nos encontramos à mesma hora, quando devíamos estar a vir do treino, mas a que não fomos. O gosto que fazemos ao fazer o que fazemos ou a dificuldade com que fazemos a contra gosto o que temos de fazer. Não há nada que façamos que não tenha esta forma de interpretação mínima do prazer e do sofrimento, do gosto e do desgosto, do bem estar e do mal estar, do bem ser e do mal ser. O ser das nossas actividades vive precisamente do prazer afectivo e emocional que dispense, com que nos outorga. Haverá actividade produzidas na nossa psique que a alterem? Isto é, há actividades da psique que actuam sobre a psique deixando-a objecto, vítima exposta e submetida a si? Os antigos perceberam a acção da psique activa sobre a psique passiva, uma relação que é estudada pela natureza correlativa da psique sobre a psique. Por outro lado, é possível que a atividade da psique se difunda e distribua pelo mais ínfimo poro da existência do meu corpo. O bem estar da alma é o bem estar do corpo, quando descansa, depois do trabalho ou do exercício, da actividade sexual, quando dorme, e estando cansado e cheio de sono. O corpo altera-se convulsivamente para se deixar estar e entregar ao relaxamento, ao sossego, como no sono que se segue a uma sessão de massagem. Mas o corpo próprio também pode estar tenso como num combate, na ânsia do prazer sexual possível e iminente, quando, prestes a atravessar a rua, olha para a direita e para a esquerda com atenção e cuidado, quando está a trabalhar no seu ofício, quando me concentro no teclado e procuro escolher as palavras que resultam do pensamento das frases e do argumento que tenho em mãos. Todas as nossas acções, todas as nossas actividades, pensamentos, sentimentos, estão implicados num horizonte que é anterior, interior e exterior, antecipa e é consequência na psique e no corpo. O corpo flui no fluxo da consciência do mesmo modo como o fluxo de consciência inunda, alaga, submerge o corpo. A psique é corpórea porque está diluída em todas as partes do meu corpo, do lado de dentro e do lado de fora. O corpo manifesta-se a partir de si à psique que lhe está justaposta, ou melhor que o atravessa em toda a sua extensão, ossos, articulações, tendões, músculos, aparelhos e órgãos, extremidades e epiderme. O corpo é da extensão do que eu vejo. O que eu vejo não é do tamanho dos meus olhos. Olho para alguém e vejo nos seus olhos, no hemisfério dos seus olhos ou espelhado nos óculos escuros, a paisagem que se estende à sua frente. Vejo a praia inteira e as nuvens no céu nos óculos de alguém ou no seu globo ocular. Será comigo assim? Ouço não nos meus ouvidos, nem interiores até, os carros que passam no tabuleiro da ponte 25 de Abril. Mas a ponte, com tabuleiro e carros, que eu ouço na sua passagem não está dentro da minha cabeça. Sinto o frio da praia na costa vicentina, mas só tenho contacto com água nos meus pés e não na totalidade dessa extensão. O cheiro que sinto rebentar-me os pulmões tem a fragrância do vento que desce das montanhas até à cidade, quando é noite. Todas as flores espalhadas pelo cume e pelas encostas das montanhas está fora do meu nariz e é no cérebro que eu sinto que o vento penetra e me embebeda. Eu toco o rosto de uma criança e não é apenas a sua bochecha ou apenas os meus dedos e a palma da mão, mas é o outro, pequeno, a pessoa inteira na sua vida que me está a ser indicada, a sua alma e não apenas a parte das bochechas que eu aperto e acaricio. A invasão do corpo é também a invasão da alma. É através do corpo que a alma se abre, estende ou contrai e fecha. Mas sou eu quem existe no corpo e na alma. Ser eu ao modo do meu ser, ser eu ao modo do meu sou, ser o ser do sou, é excêntrico relativamente à alma e ao corpo. “Sou” acompanha-me a mais ínfima parte do meu copo, sente pudor e vergonha ou mal estar, gosta e não gosta do que tem, do que faz e do que lhe fazem. Sou acompanha-me em todos os meus estados de espírito desde manhã até à noite, toda a vigília e todos os meus sonhos ou noites em que parece que não sonho e outras em que sonho acordado, bons sonhos e maus sonhos.