Manifesto das mãos

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]arcel Duchamp posicionou-se contra a tirania da retina na arte. Foi uma boa fisgada e necessária.

Todavia, cem anos depois precisamos de um manifesto contra uma arte que seja só conceptual: a arte que descartou o corpo, a mediação, o corpo-a-corpo com os materiais, e que abandonou a expressão como saldo de uma experiência no tempo, faliu.

Há um saber técnico que imprudentemente se descuidou e há uma inteligência, diria até, uma poética da mão, que convinha resgatar.

E não é preciso ir muito longe. Se até a música depende das mãos, como não ver nisso o apelo a uma conformidade, a uma humildade que nos transporta à magia do tangível? O desempenho das mãos não admite embustes, nem na punheta de bacalhau. Porque na música não basta a excelência que a partitura encadeou, coitado do acorde que não encontrou o seu exacto momento de ataque, o tom e o valor que só a mão lhe emprestam.

Há uns meses comecei uma vagarosa caminhada para o emagrecimento e quando me inquiriam sobre a minha diminuição de álcool eu respondia: “Quando o Orson Welles morreu, dizem que tinha à volta de cento e cinquenta quilos. O que é certo é que seis meses antes ele se cruzou num aeroporto com a Rita Hayworth, com quem fora casado, e que esta não o reconheceu. Ora, eu não quero praticar esta crueldade sobre a minha ex-mulher, senão o ódio que me devota e lhe orientou meia vida deixa de fazer sentido!”

Era evidentemente uma blague, decidi emagrecer quando as minhas mãos se tornaram sápidas e já não conseguia olhar para elas.

Nas mãos, como no rosto, começa a eroticidade do corpo. Calhou-me escolher o rosto e também as mãos.

Para o Rei Ubu seria simples imaginar o seguinte recurso para a dócil aceitação da escravatura: as mãos da plebe seriam desenroscadas do corpo após as dez horas de trabalho e só na manhã seguinte lhes seriam restituídas. Sem mãos não há revoltas, apesar do raciocínio.

Pois. E este idiota abandono da agricultura em todo o mundo é reflexo do caviloso predomínio que se dá a mente contra a mão. O mesmo que levou Bolsonaro a condenar um dedo no cu: eu não percebi a maleza do gesto a não ser no sentido em que faltará a mesma determinação para semear a beterraba.

O que é certo é que é bimilenária na arte a desconsideração do trabalho manual em relação ao projecto, o que redundou no racionalismo da mente.

Nem pela masturbação aprendemos.

É engraçado o descaro com que em 1965 Robert Rauschenberg enviou o telegrama-retrato de Iris Clert, uma marchant francesa, onde se lia: “ This is a portrait of Iris Clert, if I say so. Robert Rauschenberg.”

Engraçado é ter sido tomado a sério. Como antes, em Duchamp, a morfologia de um mictório, de um portador de garrafas, de uma pá de neve, foram confundidas, por simples penhor do nome, com uma nova função.

E, contudo, o peso generoso do ser humano está na mão. No que esta transfigura e transmuta. A agressão em perdão, o objecto desvalorizado em valor que cicatrize. E até a cegueira de uma mão pode ser divina. Vê-se no modo como Hokusai  aproveita o dom do acaso e faz do acidente, do estudo e da destreza, um só. Vê- se nas pinturas cegas de Tomie Ohtake, uma nipónico-brasileira que fez dezenas de quadros magníficos de olhos vendados; vê-se nas mãos de Rembrandt, na voluptuosa capacidade metamórfica de Júlio Pomar – pintores que talvez busquem a caligrafia de Deus, sem que em nenhum deles isso signifique um mínimo de beatice e antes uma operação mais concreta e abrangente do olhar.

O velhinho Focillon explicou-o maravilhosamente: “(…) entre o espírito e a mão, as relações não são tão simples como as que há entre um chefe autoritário e um servo dócil. O espírito faz a mão, mas a mão também faz o espírito. O gesto que cria, exerce uma acção contínua sobre a vida inferior. A mão arranca a capacidade de tocar da sua capacidade receptiva, organiza-a para a experiência e para a acção. É ela quem ensina o homem a tomar posse do espaço, do peso, da densidade e do número.”

Experimentem lá fazer arte contra estas grandezas.

E noutra página do seu breve Elogio da Mão, Focillon dá o uppercut: “ O que distingue o sonho da realidade é que o homem que sonha não consegue criar uma arte: as suas mãos dormem.”

Mãos sonâmbulas como as do voyeurista que domina este tempo de esplendor pornográfico, em cuja teia o cínico se espoja como a aranha convencida pelo seu raciocínio sobre a inexistência do vento.

Razão tinha o catalão Juan-Eduardo Cirlot, quando escrevia:

“Os olhos do meu espírito não têm/ a boca do meu espírito,/ as mãos do meu espírito não têm o corpo do meu espírito.// Esquartejado flutuo no abismo./ Azamboado de morte como uma água inquinada.// Já não quer dizer que não foi nada? / Todo um jogo de luzes e espelhos,/ todo um retábulo de fumo tenebroso? // As veias do meu espírito não têm/ o sangue do meu espírito.”

É urgente percebermos que o pensamento só sobrevive em consentindo que o acaso se infiltre nas redes que tece – “exterior” que só o corpo, as mãos, lhe garantem.

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