Diários de PrósperoÀ procura de sabato António Cabrita - 14 Mar 2019 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o meu velho liceu, havia um alpendre com uma mesa de ping-pong. Comprei a raquete, aquela raquete. E durante seis meses treinei afincadamente, evoluindo para níveis que me pareciam excelentes. Contava ir apresentar-me ao Benfica e tornar-me atleta federado. Um dia, o meu parceiro de jogo fora à aula e deixara a raquete dele comigo e passa por ali um aluno do sétimo – filho de sueco contou-me depois e alto e enxuto como uma vírgula. Pisca-me o olho, Eh puto (eu era do quinto) vai uma partidinha. Aceitei, antevendo a vitória. E levei 21-3. A limpeza, a elegância e técnica do jogo dele eram imparáveis. Reclamei desforra. Despachou-me com 21-2. Vendo-me baratinado, consolou-me: Deixa lá, quando jogava com o meu pai ele também me dava 21-2, 21-3, ele chegou a ser atleta de competição e foi jogar à China, com os melhores do mundo, mas depois abandonou o ping-pong porque, diz, é um desporto muito incompleto. Cheguei a casa e arrumei a raquete, que caiu para trás da estante e foi esquecida; desde então sempre que jogo ping-pong ao fim de dez minutos, começo a ver duas bolas, o enfado multiplica-se em efeitos ópticos. Vem isto a propósito da escrita, onde continuo a levar 21-2 com regularidade. Só que aqui não desisto porque me lembro de duas senhoras a quem tiro o chapéu. Diz uma, a Duras: «A partir do momento em que estamos perdidos e que não se sabe mais o que escrever, o que mais perder, aí é que se escreve. Entretanto o livro está ali, e incomoda e grita, exige ser terminado, exige ser escrito. E a pessoa vê-se obrigada a colocar-se ao seu serviço». E refere, a outra, a Lispector: «Por destino tenho de ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem». Acreditar nisto é o mesmo que acreditar em farófias, mas as farófias (graças a Deus, que é ateu) existem e tecem mapas imaginários nas nossas papilas gustativas – em pura auto-profecia. Entretanto, já tenho a idade suficiente para ter testemunhado estranhas mutações nos gostos literários. Há poucas semanas fui literalmente fulminado pela observação de uma jovem amiga de trinta anos, escritora, que me confessou que não entrava no Hemingway porque lhe parecia demasiado denso. Outro que deve ser demasiado denso é o Ernesto Sabato, mesmo para os sul-americanos. A propósito de uma crucial edição do Relatório Sobre os Cegos que vai ter lugar em Portugal, andei duas horas a catar na estante algum artigo escrito sobre ele. E nada achei de substantivo. O Carlos Fuentes, no volume sobre a literatura sul-americana, menciona-o de raspão, não lhe dedicando duas linhas. Nenhum dos ensaios críticos de Cortázar lhe foi dedicado; não descortinei qualquer artigo de Juan José Saer sobre ele, e nos livros de crítica do Piglia também avulta pela ausência. Estou chocado. O Gombrowicz nos Diários Argentinos sobrevoa-o três vezes, sem detalhe… Em Portugal, o Mega Ferreira escreveu uma panorâmica sobre a Ficção Hispano-Americana de 250 páginas, nem uma linha sobre o Sabato. Vou espreitar nos ensaios e artigos do Bolano, mas vejo a coisa mal parada. Lá descubro duas páginas, no brasileiro Davi Arrigucci Jr., onde, pelo menos, se sinalizam duas coisas relevantes: «à visão clara, ao mesmo tempo que dolorosa da realidade argentina, Sabato justapõe o mergulho nocturno no subconsciente, nas zonas oníricas e abissais, nos aspectos demoníacos da personalidade, juntamente com a indagação metafísica do sentido da existência humana. O resultado é uma espécie de delírio lúcido, uma arte dionisíaca aferrada à expressão de um pesadelo (…) A busca de uma obra poética total parece confirmar-se na tentativa de Sabato de um romance como um poema metafísico, em lugar de um mero documento». É isso, Heróis e Túmulos, e o seu bloco mais delirante, Relatório sobre os Cegos, é a translação possível no século XX de Paraíso Perdido, de Milton, depois de Lautreamont, Dostoievski, do surrealismo, e, já agora, de Robert Arlt. Mas ei-lo que sofre da abstenção dos seus pares. Se o Sabato é “sabotado” desta maneira, não há esperança; creio que o melhor é dedicar-me à roleta, levar a banca do casino do Mónaco às cordas numa noite e no dia seguinte, já multimilionário, suicidar-me numa festa de arromba, porque ao menos aí a trivialidade e o sem-sentido ganharão um semblante. O que falta ao admirável Sabato para ser mais estimado? Desconfio que a postura lúdica – naquele universo catártico, enredado em três livros de ficção, até as coincidências se tornam simetrias e vemo-nos mergulhados em atmosferas onde os lobos não se vestem de cordeiros. E, embora tal condensação trágica seja apreciada, isso afasta os muito sensíveis: afinal os mundos paralelos em Sabato traduzem a toxidade do nosso, o que assusta. Faltar-lhe-á a leveza e o engenho que sobrava a Ramón Gómez de La Serna que escreveu quatro páginas sobre a sua paixão por pregos e ao fim destas ficamos convencidos que podiam ser quinhentas? Num livro sobre Ramon observa Francisco Umbral: «O escritor puro é aquele que às vezes não tem nada para dizer, mas continua escrevendo (…) E diria que é aí, quando já não tem nada que dizer, no puro rebordo do ofício, que ele dá o melhor de si como escritor. Aquele que só escreve quando tem algo para dizer, é um senhor que diz coisas, mas não necessariamente um escritor.» É tremendo mas, ao contrário deste escriba, Sabato – que queimou vários dos manuscritos que escreveu – tem sempre algo para dizer. E com ele não há o risco de nos assaltar a sensação incómoda denunciada por Mark Twain: «Estou seguro de que a música de Wagner não é tão má como soa», porque à partida seria um erro nosso tomar a sua obra por música de câmara.