História | Livro reaviva papel do Seminário de S. José na formação das gentes de Macau

Desde princípios do século XX, é uma escola vocacionada em exclusivo para a formação de padres, mas o Seminário de S. José foi muito mais ao longo de quase 300 anos de vida. João Guedes foi revisitar o passado, reunindo peças de um ‘puzzle’ que estava por montar, num livro a ser apresentado na próxima semana

[dropcap]C[/dropcap]om quase tantas páginas como os anos de vida do Seminário de S. José, o novo livro de João Guedes figura como um capítulo da história de Macau que estava por escrever. Aceitando o repto lançado pelos Antigos Alunos do Seminário de S. José, o autor lançou-se à missão de recolher os pedaços dispersos sobre a vida e o papel de uma instituição, cujo legado, olvidado pelos tempos, fica agora cristalizado em livro. A obra, intitulada “O Seminário de S. José – Na Formação das Gentes de Macau”, é patrocinada pela Fundação Macau. O lançamento está marcado para o próximo dia 19, pelas 19h, no restaurante Metrópole, localizado na Avenida da Praia Grande.

Não se sabe exactamente quando tudo começou, porque a data da fundação do Seminário de S. José continua a ser “controversa”, mas as estimativas, com base em documentos da época, apontam para o intervalo entre os 1728 e 1749. Projecto dos jesuítas, o Seminário de S. José surge no contexto da almejada evangelização do Oriente que tinha o Japão e a China como principais eixos, constituindo-se como a “ponta de lança” para a missionação do império do Meio. “Os jesuítas fizeram a grande acrópole que é S. Paulo, com o colégio, para a evangelização do Japão, e depois, uma segunda, também erguida num alto, com uma imponência semelhante, para a evangelização da China”, começa por explicar João Guedes, em entrevista ao HM. Por ali passaram “nomes importantíssimos”, principalmente da cultura, e em escala antes de seguirem para o tribunal das matemáticas, em Pequim, iluminados da área das ciências, complementa.

No entanto, o plano, “bem organizado”, vai perdendo fôlego até se esvanecer com a chamada “questão dos ritos”. Em causa o conflito que opôs os jesuítas – que defendiam a continuação da prática dos ritos pelos católicos chineses – e outras ordens religiosas, como os dominicanos – que alegavam que os permitir nos ritos era alimentar superstições incompatíveis com o catolicismo – terminou no século XVIII com a veredicto de Roma contra os homens da Companhia de Jesus.

“A polémica foi de tal ordem que o imperador [da China] não teve alternativa senão pura e simplesmente expulsar os padres todos da China”, contextualiza João Guedes. Muitos procuraram refúgio em Macau, em concreto no Seminário de S. José, incluindo o último bispo consagrado da China que fica no território 14 anos à espera de poder entrar em território chinês, mas em vão, salienta João Guedes. A ordem de expulsão dos jesuítas dada pelo Marquês de Pombal chega em 1762, com a execução a redundar num cerco às instalações pertencentes aos jesuítas e na prisão de todos os professores em Macau. Com a expulsão dos jesuítas, o Seminário de S. José fica praticamente ao abandono, um reflexo, aliás, do encolher da força do padroado português do Oriente, mantendo-se pelos 15 anos seguintes na ‘mais apagada e vil tristeza até à chegada dos lazaristas’”, que irão “refundar” o Seminário de S. José que “regressaria, ou mesmo ultrapassaria, o seu antigo esplendor”.

Ecos revolucionários

Como narra o autor, foi nesta segunda fase da história que o prestígio do Seminário de S. José “se consolidou de facto”, constituindo-se como “a instituição de ensino local, já que a educação laica era virtualmente inexistente”. O liberalismo em Portugal vem, contudo, abrir um nova frente de crise, com os ecos da revolução a fazerem-se sentir localmente a partir de 1822. “Estamos numa altura em que o Seminário de S. José concentra a inteligência local e os professores eram todos sujeitos de grande formação e, portanto, progressistas, pelo que o liberalismo é decididamente apoiado por eles” e “contestado pelo clero secular, principalmente pelos dominicanos”.

Após o golpe, Macau singrou durante um ano independente do intermediário poder de Goa e também à revelia de Lisboa”, um período que João Guedes descreve como “muito interessante”: “Durante um ano, Macau foi gerido como uma República e quem mandava era o Leal Senado e, aliás, esteve por um fio de deixar de pertencer à coroa portuguesa e passar a pertencer à brasileira”. Isto porque estávamos na altura do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e “existia em Macau uma corrente liberal para a qual fazia mais sentido Macau ser administrativamente gerido pelo Brasil”. Desde logo porque “quem justificava a existência de Macau eram os comerciantes que, naturalmente, preferiam os brasileiros democráticos em detrimento dos portugueses absolutistas”, mas essa aspiração nunca vingou.

A ascensão ao poder dos miguelistas e, por conseguinte, o fim do liberalismo em Macau, dita a prisão ou a fuga dos padres do seminário que volta a mergulhar “numa lenta agonia”. “A educação em Macau simplesmente acaba. Não havia mais nenhum sítio para estudar em Macau. Era muito oneroso para as famílias terem que mandar os filhos para Portugal ou para as Filipinas, por exemplo…”, realça João Guedes.

Durante a guerra civil travada em Portugal (1828 a 1834) mantém-se o interregno na formação, mas o cenário que viria depois estaria longe do ideal: “O Seminário de S. José seria novamente afectado, desta feita, por outra razão: o facto de o poder instituído em 1834 ser liberal anticlerical”, explica João Guedes.

Os apelos para que o Seminário de S. José voltasse a ser entregue à Companhia de Jesus foram ganhando ímpeto, com os jornais da época a chamar a atenção para a “crassa ignorância” que reinava em Macau, com críticas de que “não existiria um só macaense de 20 anos que soubesse ler, falar e escrever com acerto a sua própria língua”. Os jesuítas acabam por voltar, num regresso que, segundo João Guedes, foi “tão marcante quanto fugaz”. “Durante os nove anos dos Jesuítas, o Seminário, além de ter crescido exponencialmente em quantidade revelou-se igualmente pela qualidade do ensino”, forjando alunos que “acabariam por ter papéis de relevo não só na vida eclesiástica, mas também noutras áreas”.

O liceu

Em 1870, por virtude de um decreto, o Seminário passa a “servir de liceu”, oferecendo “instrução secundária aos indivíduos que não se destinarem aos estados eclesiásticos”, tornando-o no “único estabelecimento de educação onde se ministrava o ensino secundário, com programa de estudos oficializado”, antes da criação de um Liceu em Macau, em 1893. Uma portaria definia que os professores teriam de ser obrigatoriamente de nacionalidade portuguesa e, pela segunda vez, os jesuítas foram novamente “arredados da história de Macau”. A saída do corpo docente não redundou, como antes, na ruína do seminário, já que no mesmo dia em que os jesuítas partiram (em 1871) chega a Macau um novo grupo, ainda que com um único padre entre os professores.

Já a entrada no século XX marca o ponto de viragem, assinala João Guedes, dado que o S. José passa a ser um “verdadeiro seminário”, existindo exclusivamente para formar padres, depois de ter tido, durante décadas a fio, o “exclusivo da educação” e a particularidade e a “grande vantagem” de formar ambas as comunidades de Macau – a portuguesa e a chinesa –, enaltece João Guedes.

Alunos notáveis

Do universo de vultos que frequentaram o Seminário S. José, o autor do livro destaca nomeadamente o marechal Gomes da Costa, líder do golpe militar de 28 de Maio de 1926, que instauraria o Estado Novo, mas outras figuras de relevo nacional ali completaram a educação primária e secundária, como os irmãos Artur e João Tamagnini Barbosa, exemplifica João Guedes. O primeiro foi, por três vezes, governador de Macau, enquanto o segundo foi ministro do Interior, das Colónias e das Finanças e desempenhou o cargo equivalente a primeiro-ministro durante a I República. Já da área da cultura emergem nomes como o pintor Luís Demée ou o intérprete-tradutor Pedro Nolasco da Silva.

O livro, dividido em 12 capítulos, traça o percurso do seminário, fazendo-se acompanhar por uma série de fotografias de diferentes momentos de uma instituição que “entronca” na vida social da própria cidade.

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