Posso dar-te um beijinho?

[dropcap]D[/dropcap]o sofá avisto gatos, figos e a solidão escolhida.

A liberdade de tantas possibilidades e dizer não, não me apetece e não, não vou. Mas isto são conversas em que eu faço todas as vozes, com mais ou menos gestos, que importa isso, o efeito lúdico é o mesmo ou até mais prazeroso. Os figos ainda não estão bons e os gatos são os da vizinha (e na verdade mais de si mesmos) não me tornei aquela senhora de há uns anos, perto do hospital da Cruz Vermelha, que tinha vários, e nomes e vozes para cada um, tradição que herdou de sua mãe. A liberdade de pequenos luxos como dormir até me fartar (e eu farto-me facilmente de dormir) ou ver, imagine-se só, três episódios seguidos de uma série. Ou duas. Filmes, de animação ou não. Luxos. Arrumar e desarrumar, doar e deitar fora, guardar e resgatar. De pensar (nunca me farto), sobretudo nos pequenos nadas. De decidir, de desistir, de repensar. De fazer planos ou tentar e aceitar, quer se realizem ou não. De estar bem assim, na praia, a ler, ou em casa, a ler. Mas de vez em quando é preciso sair, mais que não seja para fazer umas pequenas compras tontas pré último dia férias e perpetuar rituais de pouca dura. Atravessar a estrada conta como sair de casa, afinal não é como abrir a porta da cozinha e ir lá atrás, ao quintal.

Pergunta – Porque é que a rapariga atravessou a estrada?

Demorei mais do que precisava lá dentro, e parei à saída, não sei bem porquê. Estava sol. Ela pediu desculpa, perguntou onde morava, se eu ia para aquele lado, e apontou para a esquerda. Não, eu vivo mesmo aqui. Continuou a falar. Eu trazia um saco e ela, dois. Peguei neles e lá fomos, afinal eu não tinha mesmo nada para fazer. Melhor, eu só tinha nada para fazer. Vira-a algures no corredor, momentos antes. Explicou que se sentira mal, tensão baixa, e não queria arriscar ir para casa assim, que sabia que não devia carregar tanto peso, mas. Corroborei.

Lembrei-me de uma mulher que, há muitos anos, nunca mais a vi, costumava carregar sacos e sacos pesadíssimos, vinda, imagino, de casa, para a estação de comboios, e vice versa, passando talvez nalguma feira pelo caminho (sacos enormes que nunca percebi bem o que traziam), e frequentemente pedia ajuda a transeuntes para carregarem os mesmos. Calhou-me, calhou à minha irmã, e deve ter calhado a metade da população lá da terra. E como era difícil dizer que não, e como era difícil carregá-los sem acrescentar o peso extra do julgamento, da crítica, dos motivos e das admoestações, dirigidas a ela e a nós próprios que, no fundo, não saíam da nossa cabeça. Alguém sabe se Sísifo tinha com quem falar? Talvez se tivesse safado melhor se tivesse conhecido esta mulher. Ou não, ou não.

Esta moça queria ajuda só até atravessar a estrada. Mas fomos andando mais um pouco e depois mais uns metros e ela morava, afinal, tão perto como duas ruas ao lado da minha. Cinco meses de gravidez, fez no sábado, ontem. Pensava que seria um rapaz mas afinal vem aí uma garota. Falámos de hérnias, de preparações, de desmaios, de esforços, de tamanhos, de barrigas e de alegrias. Em quase tempo nenhum. Nunca nos tínhamos visto, ou melhor, reconhecido. No fim, apresentou-se e eu a ela. Perguntou, posso dar-te um beijinho? E aceitei, e deu, e ainda houve um curto e sentido abraço, e os votos normais, de que tudo (lhes) corresse bem. Esforço mínimo pode ser o que nós quisermos, pode dar-nos um sorriso enorme.

Se calhar nunca mais nos cruzamos, se calhar agora vamos esbarrar (delicadamente) a cada dois dias. Se calhar ainda descubro que ela é tão de Cabo Verde quanto eu. Não importa. Podemos sair de casa sem grandes expectativas ou expectativas algumas de real contacto humano, numa altura em que toda a gente promete, e agenda, e sente, e quer, e lamenta, e tenta, e ignora, e marca, e desmarca, e acena, e emoji, e zanga, e ama e agradece e volta a lamentar muito mas não sai do Messenger, quanto mais de casa. Mas estamos todos aí, cheios de possibilidade de acontecer uns aos outros. Não é por acaso que lhe chamam o conforto de estranhos. Muitas vezes, prefiro-os. Muitas vezes, estes minúsculos encontros quotidianos são feitos exactamente à nossa medida, e a pessoa pensa que fizemos algo incrível por ela e na verdade foi ao contrário.

Resposta – Para voltar a casa mais leve.

Entretanto as férias acabam, o contraste regressa, a doçura permanece. Aguardo os figos e, no fundo, talvez ainda os amigos.

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