h | Artes, Letras e IdeiasOvídio – Uma arte de amar Amélia Vieira - 19 Fev 2019 [dropcap]O[/dropcap]tema eterno torna-se agora bastante desertificador. Até porque o amor enquanto ideia é o elo transformador mais profundo da consciência humana, aquele que proporcionou na espécie a estrutura do fenómeno da transcendência. Elevá-lo à categoria de arte foi sem dúvida a tarefa mais feliz da Humanidade e é preciso ir mais longe para buscar a sua excepção e uma maior mestria, igualdade e contemplação, dado que os séculos posteriores embora ricos da sua seiva não correspondem a uma linguagem entre pares na sua forma comum. Heróides dá-nos sobejamente a ver que longe do amor épico pela voz do conquistador existe o diálogo amoroso do entendimento feminino que nunca ocultou o fracasso e a desdita da tormenta, num diálogo poético que faz do tema um estreitar entre pares. Ora estamos aqui na presença de mulheres que numa intervenção linguística se expressam com e para o amado, e onde se acrescenta formas literárias novas, participações sem as quais o amor na sua totalidade parece ferido no seu receptáculo. Elas estão na posse da chave do entendimento completo redobrando de efeitos perante as graduações de intensidade. Ovídio conseguiu reunir todos os géneros e mostrar na sua base elegíaca um tema que se aperfeiçoa da sua própria matéria. O amor descarta assim o seu aspecto de função e passa a trilhar o caminho da busca espiritual, o que encaminha o ser para novos atractivos, numa busca sedutora e civilizada que contribuiu para “secar o pântano” do instinto como guia. E talvez não seja por demais lembrar a frase poética e enigmática do próprio Camões: “…vereis pois, que quanto mais amor tiverdes tereis o entendimento de meus versos”. O amor entendível não é o amor partilhado, mas aquele que se alcança por evolução da mente que busca na sua génese qualquer coisa muito para além daquilo com que se factualiza. O nosso tempo é falho daquela memória onde nos leva o seu coro, a sua função semântica e o que nele pode, abastece em nós graus de entendimento e cruza agora na crueza dos suportes dos amantes terrenos bravios. Talvez que por descaso se afaste e busquemos então um efeito opulento sem resultados gratificantes, pois que é um tempo com um deficiente sentido amoroso que se permite glosar das suas múltiplas variações em derrocadas também elas civilizacionais. Mas os nossos tempos não amorosos têm no entanto apelo amoroso: estamos receptivos e cremos crer. Como arte, falta-nos a via do meio para o defender dos aglomerados e do transtorno da fabricação de pares sem futuro e com presentes inférteis, falta-nos um caminho ou uma luz condutora e, enquanto sentimento, falta saber se a sua sombra nos enriquece na nossa estreita humanidade. A voz que em Ovídio reclama transportam-nas essas mulheres cultas do seu tempo que se articulam com os conhecimentos e o mito para uma transfiguração face à grande força que sobra ao herói e dizer da grande força que existe no amar e se com ele os melhores se apaixonam. Não é improvável que os pares se saúdem na sua riqueza enquanto portadores de atributos admiráveis. Começa uma igualdade nunca vista entre aqueles que se dão na esfera comunicante. Tudo isto, posteriormente, e por paradoxal que nos pareça, viria a ser posto em causa mas, neste percurso que nomeia a fábula e a cimenta como legado, é das paixões dos homens e das mulheres de que trata esta temática delicada. Desde a Arte de Amar, às Cartas de Amor, às Heróides, é provável que tudo se tenha encaminhado para a grande metamorfose que terá o seu epicentro na fusão dos amantes, o glorificar do deus adormecido. Epistulae Heroidum (Cartas de heroínas) que deu Heróides, são vinte e um poemas em dísticos elegíacos que colocam a voz feminina no topo de uma construção bastante complexa e apaixonante como tema. Hoje, que se celebra o amor romântico, esse fruto de uma batalha pela cultura dos pares, nada encontrei de mais festivo que esta sugestão cuja noção ultrapassa em muito um melódico e divertido entendimento. Sem estas obras estamos condenados a ser o par de alguém, esse inimigo predestinado, mas com tais dádivas talvez possamos saber o mais importante daquilo que subjaz ao factor intrínseco da paixão. Convém lembrar do esmagamento logístico em que o dito amor firmado se afunda, sem a consciência de que apenas amar é o propósito e, se aos bons sentimentos não faltam também motivos práticos, nem mesmo a prática deles nos absolve de uma usurpação. Em cada idade, cada era, as coisas mudam e os efeitos variantes se adaptam, mas negligenciar a sua natureza tem custos que a razão das boas práticas nunca poderá colmatar. Perder alguém é mais que um acontecimento, é uma tragédia interna que tem o tempo a seu favor para o curar das feridas e com feridas abertas podemos abrir crateras nas carnes inadvertidas em busca da sua deidade, que é o quê? Esse não entendimento compensado por fabrico de respostas científicas de lugar comum, não darão jamais a resposta. E antes que tarde na nossa memória de séculos o muito tempo que foi preciso para tão vasto diálogo, talvez que reaprendendo a amar a vida nos mostre por fim outros caminhos. Estes tratados são do fim da era pagã, aquela em que parecemos agora entrar por outra porta, e se alguns apenas pegaram na forma da libertinagem e nos atavios que deviam presidiar à função (uma espécie de revista feminina para a obtenção de efeitos vários acerca do prazer e do espaço que ocupa nas situações mais lúdicas) em Heroídes há a diferenciação, a mulher amante com a voz que explora toda a sua complexa teia de emoções por ela transmitida e que fazem do amor um momento alto e grave, a mulher entra a ocupar o seu próprio mistério com toda essa voz que enriquece o ainda frágil modelo humano. «Estou ferida por minha própria beleza» nele se lê essa consciência de que não se entra na combustão desta força sem a lucidez de uma culpa qualquer que deve ser cultivada com a mestria de se saber fazer anunciar.