Entrevista MancheteMoisés Silva Fernandes, investigador da Universidade de Lisboa: “Mota Pinto não queria aceitar a acta” Andreia Sofia Silva - 11 Fev 2019 Portugal e a China só restabeleceram relações diplomáticas, há 40 anos, porque houve uma acta assinada que determinava a questão de Macau, algo “imperativo” para a diplomacia chinesa. Mota Pinto, ex-primeiro-ministro, queria ouvir macaenses, portugueses e chineses quanto ao documento, mas o referendo nunca se realizou. Estas são algumas das conclusões de um trabalho de investigação de Moisés Silva Fernandes, a publicar em Maio Em “Uma relação assimétrica: A acta das conversações sobre a questão Macau era uma exigência imperativa chinesa para a normalização das relações com Portugal em 1979” fala do secretismo que este documento teve nos primeiros tempos. Qual a razão para tal sigilo? Entre 8 de Fevereiro de 1979 e 8 de Janeiro de 1987 passaram quase oito anos sem se ter acesso a este documento, que era a razão de ser das relações bilaterais sino-portuguesas. Por isso, só tiveram acesso a esta acta, na parte portuguesa, o embaixador de Portugal em Paris, Coimbra Martins, o segundo-secretário da embaixada, Cunha Valente, o primeiro-ministro do então IV Governo constitucional, Mota Pinto, e os dois primeiros-ministros anteriores, Nobre da Costa e Mário Soares, e o presidente da República, general Ramalho Eanes, e os ministros dos Negócios Estrangeiros, Freitas Cruz, Correia Gago e os governadores de Macau, o coronel Garcia Leandro e o general Melo Egídio. Todavia, só o primeiro-ministro Mota Pinto e o ministro de Negócios Estrangeiros, Freitas Cruz, se opuseram. Mas, em menos de um mês, não houve alternativa senão concordar com a acta de negociações de Macau. O conteúdo da acta foi tornado público em 1987. Porque não mais cedo? Houve uma parte parcial publicada pelo primeiro-ministro Cavaco Silva, após ter passado os últimos três meses de 1986 sob a acusação de que existia um “acordo secreto”. No dia 20 de Outubro de 1986, o deputado Adriano Moreira, presidente do Centro Democrático e Social (CDS), interpela o Governo, na Assembleia da República, sobre o “acordo secreto” com a RPC, e o seu grupo parlamentar apresenta um requerimento que pede ao Governo que divulgue o texto do documento. No dia 25 de Dezembro de 1986, o ex-presidente da República, general Ramalho Eanes, declara à Radio Macau que o texto de compromisso assinado em 1979 se encontra nos arquivos do gabinete do primeiro-ministro e defende que foi “profusamente referenciado no livro Esperanças de Abril, do embaixador Coimbra Martins”. Por outro lado, o deputado Adriano Moreira, presidente do CDS, declara à mesma estação que existe “uma contradição evidente entre o depoimento do livro de Coimbra Martins e a resposta dada”. Por sua vez, o governador Pinto Machado afirma “desconhecer a existência de qualquer acordo celebrado entre Portugal e a China”. No dia 2 de Janeiro de 1987, numa carta enviada ao ex-presidente da República, general Ramalho Eanes, o primeiro-ministro, Cavaco Silva, afirma que “não se encontrava nos arquivos do gabinete e continua a não se encontrar o texto do compromisso assinado entre os Governos de Lisboa e Pequim”. Todavia, André Gonçalves Pereira, ex-ministro dos Negócios Estrangeiros do VI e VII Governos constitucionais, chefiados por Pinto Balsemão, declara: “Aqui há um equívoco. O primeiro-ministro diz que no seu gabinete não tem o tratado assinado sobre Macau e tem razão. O tratado deve estar, com certeza, num cofre do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), e não na Presidência do Conselho de Ministros. Foi-me entregue por Freitas do Amaral, e eu entreguei-o, como é da praxe fazer com documentos de certa importância, a Futscher Pereira”. No dia 3 de Janeiro de 1987, o governador Pinto Machado reafirma que desconhece o eventual compromisso sino-português sobre Macau. Moisés Silva Fernandes. Foto de Paulo Dias O presidente da República nunca procurou esclarecer o paradeiro do documento? Ramalho Eanes classifica de “surrealista” o desconhecimento do paradeiro do “acordo secreto” e volta a reafirmar: “Existe, é simples e não contém nada de especial. Compete ao Estado pronunciar-se sobre a matéria que nele se encontra inscrita. […] [O acordo] é a base negocial de todo o processo da transferência da Administração portuguesa do território de Macau para a República Popular da China (RPC)”. Para obter consenso interinstitucional, o Conselho de Estado reúne-se no dia 6 de Janeiro de 1987 e, pela primeira vez, o primeiro-ministro fala sobre a acta de negociações de Macau. No dia 8 de Janeiro, a Presidência do Conselho de Ministros publica pela primeira vez, mas de forma parcial o documento. Em 2010, o ministério dos Negócios Estrangeiros publica na revista Negócios Estrangeiros o texto integral da acta de negociações sobre Macau. A assinatura de uma acta era vontade da China e Mota Pinto parecia pouco disposto a isso. Que razões aponta para esse sentimento? O primeiro-ministro não queria aceitar uma acta sobre as negociações de Macau, mas os governos anteriores ao IV Governo, nomeadamente o II e o III Governos constitucionais deram início [ao processo] e consentiram que a RPC apresentasse a acta das negociações sobre Macau, e nunca a rejeitaram. Portugal queria deixar apenas um esclarecimento verbal de que considerava Macau território chinês. Quais as principais razões para a China insistir na acta e querer ir além do mero acordo verbal? A RPC queria deixar escrito e assinado pela parte portuguesa que Macau seria reunificada à China continental quando fosse necessário, segundo Pequim. Um acordo verbal teria menos garantias. Além do Partido Popular Democrático, que propôs que o projecto da nova constituição portuguesa deixasse de mencionar Macau como território de Portugal, qual era a posição dos restantes partidos políticos face a Macau? Os partidos eram consensuais quanto à questão de Macau, que deveria ser restituída à RPC. Não chegou a ser feito um referendo ou consulta à população de Macau, como era vontade de Mota Pinto. Foi um erro neste processo? Já era muito tarde nos finais de 1978 e 1979, isto é, durante o IV Governo constitucional. Por outro lado, durante o ano de 1978, houve três governos, três primeiros-ministros e três ministros dos Negócios Estrangeiros, o que gera uma situação muito volátil na política portuguesa. Porque é que a elite portuguesa estava contra Mota Pinto em relação ao referendo? Tanto Ramalho Eanes como a Assembleia da República, incluindo os partidos que formavam os governos, estavam contra o referendo em Macau, porque certamente as três comunidades, chinesa, macaense e portuguesa iriam votar contra a acta. Isto porque [o documento] entregava Macau à RPC quando Pequim o desejasse. Por esta razão, o primeiro-ministro [Mota Pinto] teve de abandonar a ideia do referendo, no dia 2 de Fevereiro de 1979, quando o ministro dos Negócios Estrangeiros, embaixador Freitas Cruz, lhe disse através duma nota que tudo estava correcto e que estava a defender os nossos “interesses”. A Assembleia Legislativa acabou por ficar mesmo à margem deste processo? Sim, ficou na periferia desta importantíssima matéria porque, de acordo com o Estatuto Orgânico de Macau, era representativa dos interesses dos macaenses até 1984, quando passou a ser aberta às três comunidades. Mas houve um momento, após o 25 de Abril de 1974, em que o presidente da República, general António de Spínola, queria um referendo para todas as colónias, incluindo Macau. Acta de Macau Quais seriam as consequências, caso o referendo acontecesse? Se nesta altura tivesse havido o referendo aberto a todos os chineses, macaenses e portugueses, seria um absoluto fracasso para a RPC, porque os chineses votariam contra a decisão de entregar Macau à RPC. Convém recordar que até ao dia 29 de Janeiro de 1967, Macau tinha sido, desde 1949, um centro de refugiados da China continental, chegando estes, em certos anos, a exceder a população do território. Todavia, em Portugal, o general António de Spínola demitiu-se na reunião do Conselho de Estado de 30 de Setembro de 1974, e o general Costa Gomes assume a presidência da República. O que se pretendia já não era um referendo, mas a descolonização. Em relação a Macau, acabam por abandonar o referendo e [determinar] a entrega do território à RPC, visto que não há um movimento de descolonização interno e já se tinha sabido, através das Nações Unidas, que a RPC tinha retirado o estatuto de colónias em 1972 a Macau e Hong Kong. Portugal cedeu numa alteração de termos, na acta, proposta pelos chineses. Havia uma preocupação “de impedir repercussões indesejáveis na ordem interna que podiam originar especulações do efeito desestabilizador”. A nível sócio-político, quais eram os riscos? Havia em Portugal um certo receio que o Partido Comunista Português (PCP) usasse esta acta para acusar o Governo de centro-direita de estar a actuar com a RPC. Todavia, depois do 25 de Novembro de 1975, o PCP deixou de ter o peso que tinha no sistema político português e não havia qualquer repercussão em Macau. Em relação a Taiwan, após o dia 29 de Janeiro de 1967, era muito difícil movimentar-se no terreno, porque o Partido Comunista Chinês estava em todos os lados, incluindo nos meios governamentais da Administração portuguesa. Fala de uma “relação assimétrica” entre Portugal e China entre o período de 1949 e 1977. Quais as assimetrias mais evidentes que pode apontar, além desta alteração dos termos na acta? O novo embaixador da RPC junto da ONU, Huang Hua, envia, no dia 8 de Março de 1972, um ofício ao presidente da Comissão Especial de Descolonização, Salim A. Salim, da Tanzânia, a declarar que Hong Kong e Macau são territórios chineses ocupados pela Grã-Bretanha e Portugal, devido aos tratados iníquos impostos à China em meados do século XIX, e a requerer que ambos os territórios sejam retirados da relação de territórios a descolonizar. Isto é, a Declaração das Nações Unidas sobre a Concessão da Independência a Países e Povos Descolonizados, de 15 de Dezembro de 1960. O Governador de Macau, Nobre de Carvalho, envia um telegrama secreto ao ministro do Ultramar, Joaquim da Silva Cunha, a comunicar que foi informado por Ho Yin que era de “grande conveniência [do] Governo português não fazer qualquer afirmação sobre [a] citada declaração [,] muito menos pretender rebater [e] argumentar”. Pode apontar mais exemplos? Sim. Sob pressão intensa da RPC temos o encerramento do Comissariado Especial do Ministério dos Negócios Estrangeiros da República da China (Formosa/Taiwan) pela a Administração portuguesa de Macau em 29 de Março de 1965. A Administração portuguesa de Macau proíbe actividades hostis contra a China continental, no dia 18 de Setembro de 1963. Zhou Enlai manda cancelar o IV aniversário de Macau, em 8 de Outubro de 1955, e, finalmente, o conflito das Portas do Cerco em que esteve presente o ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, em 1952. O seu trabalho também conclui que as autoridades de Hong Kong estavam preocupadas com a acta. Poderia ter sido um exemplo para o processo de transição? Os ingleses que estavam no Governo colonial em Hong Kong permaneciam muito preocupados com a acta sobre Macau, porque era muito explícito que Macau iria reunificar-se a Pequim quando este achasse conveniente, enquanto Hong Kong não tinha um acordo verbal que considerasse Hong Kong território chinês. É por isso que quando o Governador de Hong Kong, Sir Murray MacLehose, vai a Pequim, entre os dias 26 a 30 de Março de 1979. Deng Xiaoping diz-lhe que está satisfeito com o status quo de Hong Kong. Contudo, o presidente chinês informa o governador britânico de Hong Kong que a RPC seria forçada a tomar Hong Kong, caso o Governo do Reino Unido continuasse a fazer pressão sobre o Governo chinês para renovar o aluguer dos novos territórios de Hong Kong. É mais do que óbvio que Deng Xiaoping conhecia o conteúdo da acta de negociações sobre Macau e a elite de Pequim iria pôr imensa pressão sobre as autoridades de Hong Kong para que deixem a colónia em 1 de Julho de 1997.