h | Artes, Letras e IdeiasRecomeçar, sempre Valério Romão - 18 Jan 20198 Jul 2019 [dropcap]T[/dropcap]odos os dias a vida recomeça. Dormir marca o reinício do nosso sistema operativo. No sono e no sonho, embora sentados na cadeira de comando, não somos nós que pilotamos. Melhor: é outra instância da identidade, uma à qual só temos acesso abdicando da lucidez e do controlo. O sonho tem a consistência da vida. Tudo quanto nos acontece no sonho nos parece tão real como aquilo que, de facto, tomamos como o sendo. Na verdade, não podemos afirmar com certeza não estar a viver um sonho. Não há nenhuma prova de que estamos acordados que não possa ser produzida num sonho. Esta é a premissa de muitos filmes de ficção científica, nomeadamente do Matrix. Outro dos problemas filosóficos equacionados no filme é o da relação entre a lucidez e a felicidade. Tendo em conta que passamos mais de um terço da nossa vida a dormir, se pudéssemos controlar os nossos sonhos, e tendo em conta o absoluto valor de verdade que lhes emprestamos quando os vivemos, que seria preferível? Estar acordado e sofrer ou sermos felizes a sonhar? Os sonhos não são normalmente sequenciais, como a vida o é. O adormecer e o acordar estão ligados por uma continuidade de sentido a que damos o nome de vida. Cada sonho, por sua vez, é um acontecimento fechado. E se não o fosse? Ao contrário do que acontece agora, os sonhos podiam ter o formato narrativo da vida. Poderia dar-se o caso de nos vermos confrontados com a escolha de Cypher, do filme supracitado? “Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o ponho na boca, a Matrix está a dizer ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Após nove anos, sabe o que é que percebi? A ignorância é uma bênção.” A maior parte de nós passa por tormentas na vida cuja resolução é improvável ou difícil. “Quem me dera dormir e acordar com tudo bem”. Já dissemos e/ou já ouvimos isso mais que uma vez. Alguns de nós não descartariam inclusive passar uma boa parte da vida numa simulação na qual pudéssemos ser tudo o que não fomos ou, pelo menos, felizes. Entre um estado de lucidez e um sonho, a diferença é unicamente o estatuto. No entanto, temos dificuldade em aceitar a possibilidade de estarmos equivocados quanto ao estatuto da nossa experiência. Até podemos escolher viver na mentira, desde que tal corresponda a uma decisão nossa e saibamos onde começa um estado e acaba outro. O que não conseguimos aparentemente tolerar é a possibilidade de estarmos na ilusão sem saber a que corresponde a realidade. O nosso ponto de vista está calibrado, nas palavras de um professor de ontologia que tive, na “precisão indespedível da verdade”. O estatuto da experiência vital não nos é acessório. Pelo contrário, este apego transcendental à verdade ocupa uma posição mais central e decisiva do que felicidade. Sucede é que na maior parte do tempo pensamos estar na posse de uma compreensão adequada do que se está a passar. Por isso nos parece que a felicidade é o ponto arquimédico sobre o qual assenta o edifício da existência. Querem uma prova? Experimentem acordar num quarto fechado, sem se lembrarem de como lá foram parar. Qual é a primeira pergunta que se imaginam fazer? A realidade é demasiado perseverante, demasiado ubíqua. Está por todo o lado. Há dias em que gostaríamos de lhe fechar a porta e a ela voltar remendados, refeitos, curados. Mas quando fechamos a porta, seja ela qual for, o que fica do lado de dentro não difere em nada daquilo que fica lá fora. Mesmo que diminuta, a realidade restante ainda nos consegue esmagar. Deveríamos saber como dormir mais e melhor. Como encadear os sonhos ao jeito de contas num fio. Ou como tornar cada recomeço “o dia inicial e limpo” da Sophia.