Verões

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]stes dias de calor abrandam o dia. Mesmo o vento nas ruas que lhe estão expostas é quente. Ou então não mexe uma palha. Percebe-se a lentidão dos gestos como uma tentativa de arrefecimento. O mais pequeno gesto convoca uma libertação energia. Apesar da inércia destila-se. O céu azul e as praias lotadas atestam a persistência do verão no outono. Outrora, havia um mundo vivido pelas férias grandes, início de anos lectivos, reencontros. Há quem nunca tivesse saído de anos escolares. Talvez só saia desse ritmo anual quem não tenha contacto com escolas, por não ter filhos.

A pujança do verão impõe-se, ainda. Agora, pelas suas características meteorológicas. Ou alguém nos traz os verões passados. Os verões da infância eram cheios de noites de calor insones, antecipando manhãs de praia e sestas a seguir ao almoço. Os da juventude eram dias e noites sem amanhã, com os ruídos da idade, céu estrelado, romance, feliz ou infeliz, pequenos almoços nas padarias de um qualquer local e dias mal dormidos no parque de campismo ou, pior ainda, na praia.

Também podia haver o resguardo. A antecipação de um ano lectivo particularmente exigente suscitava a leitura. As tardes desses verões passadas no campo ou na praia tinham o ritmo voraz das leituras, variavelmente feitas de pé ou deitados, gramática, poesia, romance. Acompanhada de café com limão e gelo lia-se a Crítica da Razão Pura de Kant a inventar as condições de possibilidade da experiência.

Há os verões da doença de familiares. Há os verões com as mortes de familiares, no princípio, meio ou fim. Há mortes que se antecipam e outras, não. Esses verões são oceanos em que não se mergulha. Atravessa-se a estação sem estar nela. O alívio vem com as primeiras chuvas, os primeiros dias frios, quando se passa a usar a roupa de inverno e se arruma a roupa de verão. Delineia-se, contudo, sempre o mesmo verão, um verão que está inscrito em nós pelo universo, pelos dias grandes, pelo calor, pela luz. Ou talvez seja o próprio princípio, a própria ideia de princípio. O primeiro ano cósmico inculca-se-nos nas nossas cabeças. Não o esquecemos e não podemos lembrar-nos dele, vivido o tempo primordial como o tempo pré-natal, sem verdadeiramente cá estarmos. Mas essa inscrição lança-nos e projecta-nos para um futuro a haver numa outra possibilidade.

E alguém aparece. Não é alguém em abstracto nem é geral. É alguém que tem ainda em si inscrito o verão e põe em prática ainda o da sua infância. É um verão de dias longos de praia, banhos atlânticos, travessias de rios, fins de tarde, jantares à conversa e, quando é noite, abraços e beijos. E se achássemos que tínhamos tido verões, afinal não os tínhamos tido. Foram verões só literários, ficções de possibilidades, atestados pelo que cremos ser os verões dos outros. Mas é possível que, tarde na vida, sem contar verdadeiramente com nada surja como uma brisa ou a leve corrente do rio a encher, um verão partilhado, na verdade, inaugurado por um outro aí comigo.

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