Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCenas do mundo flutuante, de Kenneth White António Cabrita - 21 Jun 2018 [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o Paulo José Miranda 1 Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas. 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca. am a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado. 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais, os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca.