h | Artes, Letras e IdeiasA última garrafa (num consultório privado) Paulo José Miranda - 16 Jan 2018 [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]OUTOR: Pode até ser. (silêncio) RAUL: Pode até ser, o quê? O comprimido ou o livro? DOUTOR: Ambos. Ambos, meu amigo. Diga-me uma coisa, você já contou essa sua doença a alguém, para além de mim? RAUL: Claro que não, doutor. Não sou doido. DOUTOR: Claro que não. Precisava apenas de me certificar. RAUL: Porque pergunta isso? DOUTOR: Por nada. Curiosidade apenas. RAUL: (sorrindo) Parece que o doutor começa a estar bastante interessado no meu caso. DOUTOR: Efectivamente, estou. RAUL: Olhe, porque é que não fazemos um negócio? DOUTOR: Como assim?! RAUL: O doutor dá-me o comprimido e eu conto-lhe tudo acerca da minha doença, para que possa escrevê-la, logo assim que eu morra. E escreve como se não se tratasse de um caso real, mas fictício ou filosófico, como queira. Está a ver? DOUTOR: Está doido, homem? Não quero escrever nenhum livro, nem sequer seria possível escapar de tal situação. Ou você julga que pode ir para casa e tomar o comprimido na sua cama? Não! É preciso que esteja num hospital ou numa clínica e seja acompanhado por um médico que se responsabilize por todo o processo, que neste caso seria eu. Depois, obviamente, o seu caso teria também de ser reconhecido pelos outros médicos. RAUL: Não me pode dar o comprimido, simplesmente? Ninguém precisava de saber. DOUTOR: Como não? Assim que o encontrassem morto, vinham imediatamente aqui. RAUL: Mas ninguém sabe que aqui vim! DOUTOR: Como não?! Você está registado… RAUL: Não é difícil fazer desaparecer uma ficha médica, doutor. DOUTOR: Então e o que fazemos à enfermeira? Matamo-la? RAUL: Ela não se vai lembrar, doutor. Entra tanta gente aqui no consultório. DOUTOR: Claro que se vai lembrar. Você não é pessoa que passe despercebida. Mais a mais para uma mulher. Nem pense nisso. Vou esquecer que me fez essa proposta. (silêncio) DOUTOR: Deve ter sido a primeira vez que tentou algo de ilegal, não? Ainda vai acabar por começar a viver, homem. Se continua assim… RAUL: O meu problema não é moral, doutor. Se não parar de pensar desse modo, estamos aqui a perder o nosso tempo. Crê que não é possível fazer com que a enfermeira não se lembre de mim? DOUTOR: Suborno, quer você dizer? RAUL: Por exemplo. DOUTOR: A continuar assim ainda acaba mas é no governo, homem. Está mesmo a falar a sério? RAUL: Doutor, pareço-lhe homem para brincadeiras? DOUTOR: De qualquer modo, ainda que fosse possível, seria muito fácil saber-se que o comprimido saiu daqui. RAUL: Porquê? DOUTOR: Porque há registos de todos estes comprimidos. A polícia começaria a investigação imediatamente por aí. E como é que você quer que eu lhes explique a falta de um dos comprimidos. RAUL: Roubo. DOUTOR: Roubo? E assaltavam-me o consultório para levar um comprimido? RAUL: Porque não? Você até poderia corroborar a hipótese de eu ser um caso obsessivo, que tinha tentado tudo para que me desse o comprimido, que você rejeitou peremptoriamente. E até me tinha sugerido um amigo psiquiatra. DOUTOR: Então já não precisamos de omitir a consulta? RAUL: Não! Está a ver, só traz vantagens. Já não é necessário a cumplicidade da enfermeira. DOUTOR: E como é que você entrava aqui? RAUL: Não é difícil, doutor. Provavelmente o prédio não tem segurança. E assaltos é o que se vê mais por aí, doutor! Mais assalto, menos assalto, não faz muita diferença. Não é necessário muita explicação. DOUTOR: De qualquer modo, tinha de existir um arrombamento, por certo. RAUL: Também não é difícil. DOUTOR: Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, que julgo que está a esquecer. Como é que você iria saber quais eram os comprimidos e onde estavam? (silêncio) RAUL: Pois essa parte já é mais difícil. DOUTOR: Esqueça isso, homem. E, para além do mais, não estou interessado na contrapartida do negócio. RAUL: Não quer escrever sobre o caso? DOUTOR: Talvez queira, mas como facto da medicina e não como ficção ou o que quer que seja. Começo, de facto, a acreditar que a sua doença é real, percebe? RAUL: Quer, portanto, manter-me vivo, é o que é. Estudar-me. DOUTOR: Se quiser pôr as coisas desse modo. RAUL: Eu não quero pô-las desse modo, doutor. Já lhe disse que não tenho tempo. Não me faltava mais nada! Além do que sofro, transformar-me em cobaia. DOUTOR: Mas parece que não tem muitas outras alternativas. (silêncio e o doutor serve mais whisky) RAUL: Escute, doutor. Desculpe voltar ao assunto. E se você dissesse à polícia que eu cheguei aqui armado e que, depois da enfermeira ter saído, o ameacei com uma arma para obter o comprimido. Você nada pôde fazer, senão entregá-lo. Assim que sair daqui, telefona imediatamente à polícia a participar o roubo e dá-lhe todos os meus dados, que estão na ficha, de modo a que eles possam intervir e impedir que use o comprimido. Está a ver? Uma coisa limpinha. Nem você se compromete, nem eu saio daqui sem o comprimido. DOUTOR: Mas seria necessário que a polícia encontrasse essa tal arma em sua casa. E não me vou arriscar a que você diga que sim e, depois, não há arma nenhuma. Quem se lixa sou eu. Compreende? RAUL: Podia ser uma faca! Trazia uma faca grande de cozinha comigo. Não vai duvidar de que tenho uma, pois não? DOUTOR: E se me pedem para descrever a faca, o que é que faço? RAUL: É fácil, doutor. Se quiser descrevo-lha ou, então, diz muito simplesmente que perante a surpresa e o medo nem sequer reparou nas características da faca. Que me diz? DOUTOR: Digo-lhe que começo a ter medo de si, é o que lhe digo. Porque você não desiste, realmente. RAUL: Se o doutor soubesse o que sofro não estranharia a minha insistência. Peço-lhe apenas um pouco de piedade, doutor, por favor. DOUTOR: É impressionante a mente pragmática que você tem! RAUL: É a dor que me traz todo este pragmatismo, doutor. DOUTOR: Responda-me com toda a sinceridade. Estaria disposto a matar, por esse comprimido? RAUL: Não lhe posso responder a essa pergunta, doutor. Nunca sabemos aquilo de que somos ou não capazes de fazer. Mas posso dizer-lhe que estou disposto a quase tudo para morrer. (o telemóvel toca novamente)