Ira em âmbar

Hoje Macau, 25 Novembro

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]prende-se tanto nas páginas de Hoje. Como se lavrada em braille, sigo cada linha da crónica do mano António [de Castro Caeiro], que anuncia erôs como das mais difíceis palavras antigas de trazer para a língua do agora mesmo. Ainda que estes nossos dias vivam na tensão eléctrica de permanente erotização (a satisfazer em bens e serviços mais adiante e acima, em preço e requinte). Escava ele na etimologia para encontrar fragmento de ira, que em sentido mais paisagístico se traduz em estado de alma, dominadora disposição: uma ansiedade na qual estamos imersos, borboleta no âmbar. Basta desejar um bater de asas para que a tempestade venha a acontecer algures e no futuro. «Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho.» Sem apelo nem agravo, encontro-me mergulhado em uma raiva constitucional: preciso furiosamente de mais aquele verso, do naco de prosa, de um corpus, da espessura do volume, da forma da qual desembutir o livro. «O erôs descreve esta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento.» Tomo nota: está na hora de escolher a ausência que mais me convém.

Cervantes, Lisboa, 30 Novembro

No início dos anos 1990, em Barcarrota, Badajoz, uma picareta rompeu parede e papel. Na sua carne, uma casa escondia biblioteca clandestina de heterodoxias listadas inquisições várias: diálogos com textos sagrados, indicações práticas de magia, tratado de exorcismos, manuscrito de conteúdo sexual, a mítica Oração da Emparedada, em português, além de um exemplar da jóia da literatura picaresca dos vizinhos, esse Lazarillo de Tormes que não deixou ainda de picar o desejo. A picareta trazia para a luz do presente este pedaço oculto do século XVI, ainda que para tanto tenha rompido o «Alborayque», um libelo contra os convertidos que descreve o cavalo de Maomé como maior que uma mula, mas mais pequeno que o cavalo, mantendo o rosto deste, olhos de homem, orelhas de cão, corpo de boi, uma perna de águia, outra de homem, outra de leão sem unhas, a ponta da cauda uma cabeça de garça, sendo as rédeas espadas e o freio de fogo ardente… Quem seria o leitor primeiro desta biblioteca com orelhas de e pernas de e cabeça de e olhos de, toda feita de papel ardente? Dos exemplares fac-similados desta Biblioteca de Bancarrota partem histórias em todas as direcções.

CCB, Lisboa, 2 Dezembro

Chegou e descalçou-se, apesar do frio. Estava em casa. Talvez sobrasse assoalhada em demasia no palco do grande auditório, mas Patricia Barber abriu nele casa. Os pés nus não me causaram grande incómodo, ao contrário de uns berros de incitamento, que também gritavam à-vontade, mas no contexto arranharam-me o espírito. Não terá sido o mais conceptual dos concertos, limitando-se a uma fluidez que nos varreu com sucessivas marés, das que só elas sabem ser ao sabor da lua. Saltitou por vários álbuns, no nexo jazzístico de esticar relações onde não as havia, tempo, pacing, key, disse algures que as escolhas só a isso obedeciam. A voz de Barber estende-nos um veludo sobre o qual apetece caminhar ao encontros dos versos, desconcertantes como a só a poesia sabe ser ao sabor das luas. Convivo amiúde com o seu Mythologies, do qual nos ofereceu The Moon, entre outros. Confessou, de pés descalços, que gostava de brincar de deus. Apresentava canção em que deus se apaixonava pelo artista. Fiquei com ideia de era um dos temas que escreveu para Renée Fleming, mas não tenho a certeza. Conservo a ideia, de um deus compositor que propõe contrato ao cantor: «“If I give you music, will you give me form?” As gods always want mortal form.» O ponto final, já em encore, foi uma versão calorosamente cool de Light my fire, dos The Doors. A chama esteve, ainda assim, ali por casa. Ainda voltou, para apanhar os sapatos. (Foto de Jammi York).

Horta Seca, Lisboa, 4 Dezembro

A princípio rimo-nos, como não? Pensando bem, a melhor forma de embravecimento, talvez fosse de chorar. No Spam Cartoon de há uma semana (https://www.youtube.com/watch?v=vDP66GuyLGs) púnhamos em campo os presidentes dos três grandes, em jogo amigável, mas com um árbitro na vez de bola. Parecia-nos singelo retrato da situação destes últimos meses, pouco mais. Eis que a realidade nos surpreendeu com pontapé nas canelas. A Associação Portuguesa de Árbitros de Futebol (APAF), liderada por Luciano Gonçalves, apresentou queixa contra a RTP à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) por causa deste nosso «vídeo animado satírico exibido na RTP 3». Segundo os senhores do apito, apelávamos à violência! De que cor será a ironia, amarelo vómito ou vermelho directo?

Sala Mário Viegas, São Luiz, Lisboa, 6 Dezembro

O acaso, senhor das coincidências, foi de lanterninha sentar-me no lugar D13. O treze soergue-se vezes sem conta bom miradouro, vistas a perder. Uma sala no sopé de muro alto e cinzento, doméstica sala de jantar no sopé do betão. O deus dos movimentos, Tiago [Guedes], projecta estática entre cenas avisando-nos que entrámos em atmosfera eléctrica e que podemos bem ser atingidos por impulso desvairado. Isto da estática tem mais que se lhe diga, e contém ciência sobre equilíbrios e forças. Não deixaremos de ver, na cena domesticada, esse jogo que empurrará a Isabel [Abreu] contra o Tonan Quito e o Romeu Costa, sustendo-se e sustentando-se. E a espetar farpas nas frases uns dos outros, interrompendo-se para se agarrar, para não se deixar cair para trás. Tempo, pacing, key. Em «Órfãos», Dennis Kelly desenvolve um sistema de não-ditos, quase-ditos, mal-ditos, um texto de aflitos que suscita escadas sempre a subir ou a descer em direcção ao horizonte em que cada um se vai desvelando, mas invariavelmente aquém do tudo dito. O acontecimento que justifica o sangue vai sendo talhado à navalha pelo refazer rarefeito do passado pelas palavras e pelo corpo dos autores. A violência, tal qual a verdade, apenas sugerida, imaginada. O resultado? Feridas, que tudo se resume a família e, portanto, a sangue. No coração da noite, o corpo do teatro transborda de força. A cidade, como o Mário [W.] na peça, finge que dorme.

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