h | Artes, Letras e IdeiasO que é que Confúcio tem a ver com os “pés de lótus”? Julie Oyang - 22 Nov 201723 Nov 2017 [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente houve duas coisas que me chamaram a atenção. O ressurgimento dos valores tradicionais chineses, como parte das novas políticas do Partido Comunista, que justifica assim esta opção, “a soberba cultura tradicional é um alicerce espiritual importante para atingir o Sonho Chinês” e a ressurreição do “enfaixamento dos pés das raparigas”, através da implementação em todo o país de aulas sobre “virtudes femininas”. O enfaixamento dos pés é uma antiga tradição chinesa, que não deve ter lugar na sociedade moderna. É um dos exemplos mais flagrantes de crueldade contras as mulheres, condenando-as a uma vida inteira de sofrimento e de incapacidade. Diz-se que esta prática se ficou a dever a Yao Niang, uma prostituta e dançarina da corte do séc. X, que começou a atar os pés em forma de Quarto Crescente. Ela enfeitiçava o Imperador dançando na ponta dos pés, dentro de um lótus dourado com 1,80m de altura, decorado com fitas e pedras preciosas. Além disso, os pés enfaixados provocam o “andar de salgueiro”, um movimento que é produzido pelo apoio do corpo nos músculos das coxas e das nádegas. Inicialmente, o enfaixamento dos pés surgiu revestido de conotações eróticas e, gradualmente, foi-se tornando moda entre as elites. Mulheres com dinheiro, tempo e um vazio por preencher, fizeram desta prática um símbolo do seu estatuto social. As famílias com filhas casadoiras passaram a utilizar o tamanho do pé das jovens como passaporte para a ascensão social. A noiva de sonho tinha um pé de 7,5 cm, designado por “lótus dourado”, um processo que demorava seis anos, através da aplicação de faixas muito apertadas nos pés das meninas em crescimento, de forma a que estes não excedessem os 12 cm de comprimento. Os “pés de lótus” representavam o ideal de beleza na antiga China. Eram também sinal de um elevado estatuto social, porque estava implícito que as suas “donas” se podiam dar ao luxo de não trabalhar e de ficar em casa a maior parte do tempo. As mulheres com pés enfaixados tinham grandes probabilidades de se casar com homens ricos. Neo-Confucionismo e Mongóis A Era Song (960-1279) assistiu ao desenvolvimento do Neo-Confucionismo, o mais parecido que a China teve com uma religião de Estado. O Neo-Confucionismo valorizava sobremaneira a castidade, a obediência e o esmero da mulher. Uma boa esposa deveria ter como único desejo servir o marido, nenhuma outra ambição para além de dar à luz um rapaz e qualquer outro interesse que não o de se subjugar à família do consorte – o que significava, entre outras coisas, que não se deveria voltar a casar se enviuvasse. O acto do enfaixamento dos pés– a dor e as limitações físicas que provocava — era uma demonstração diária da dedicação da mulher aos valores de Confúcio. Após os Mongóis terem conquistado a China, em 1279, o enfaixamento dos pés representava a expressão da identidade Han. Para as mulheres chinesas, esta prática cruel era a prova diária da sua superioridade cultural sobre os bárbaros incultos que as governavam. A partir daqui os pés de lótus tornaram-se, à semelhança do Confucionismo, num marco da diferença entre os Han e o resto do mundo. Para cúmulo da ironia, embora os seguidores de Confúcio condenassem inicialmente esta prática por a considerarem frívola, a adesão das mulheres a ambas uniu-as num acto único. Enquanto tradição, o enfaixamento dos pés foi vivido, perpetuado e realizado pelas mulheres até ter sido banido em 1912, embora a prática se tivesse mantido até à década de 30. A última fábrica a produzir sapatos de lótus fechou em 1999.