Mariana França Gouveia: “Macau tem forte potencial para ser um centro de arbitragem”

Está em Macau para participar no seminário sobre mediação e arbitragem organizado pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária. A professora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Mariana França Gouveia, não tem dúvidas: Macau tem potencial para vir a ser uma referência enquanto centro internacional de arbitragem. No entanto, o processo ainda está numa fase embrionária e num processo de consciencialização

 

Como é que vê as questões da mediação e da arbitragem em Macau?

A ideia que tenho, sendo que sou uma estrangeira e é a primeira vez que aqui estou, é que ainda são processos que estão numa fase inicial. Há já alguma coisa, tanto na mediação como na arbitragem, mas pouca. Existe ainda algum desconhecimento também mas há muita vontade de aprender e de desenvolver. Não sei se estou a fazer a apreciação certa, mas é o que me parece com as conversas que tenho tido, quer com colegas advogados, quer mesmo com a organização do curso.

O que é que estes dois processos, que têm como objectivo evitar o seguimento para tribunal, podem trazer de positivo para Macau?

O meu trabalho tem muito que ver com  a resolução alternativa de litígios que enquadra estas duas figuras, ou seja, todos os modos de resolver litígios que não passam pelo tribunal. Hoje em dia esta ideia já é completamente internacional. Há uma ideia clara de que o tribunal é uma alternativa, um meio, mas que há outros modos de resolver litígios. Trabalho muito esta área em termos académicos. Em termos profissionais trabalho só em arbitragem, embora também tenha formação como mediadora, mas nunca fiz nenhuma mediação. Trabalho sim como árbitro, ou seja, como juíza, digamos assim, destes processos arbitrais. Mas vamos primeiro distinguir conceitos. Na mediação há uma terceira parte envolvida que vai facilitar o acordo entre as partes através de uma série de mecanismos. Se as partes não chegarem a acordo o processo pára e o litígio não fica resolvido. A arbitragem já implica um processo muito idêntico ao que se passa em tribunal. Tem os chamados juízes e que são escolhidos pelas partes e, no fim do processo arbitral, emitem uma sentença que tem exactamente o mesmo valor da sentença num tribunal, ou seja, é vinculativa para as partes e pode ser executada. São dois processos muito diferentes, um é o que chamamos de consensual e outro é o que chamamos adjudicatório, porque há uma decisão e independentemente das partes concordarem ou não com essa decisão, ficam vinculadas e têm de a cumprir, sem direito a recurso. Ambas têm uma vantagem comum: permitem uma solução fora dos tribunais. Mas, além disso e até diria mais interessante, é o facto de serem abordagens diferentes ao litígio. A mediação tem imenso sucesso por esse mundo fora, designadamente nos países de Common Law.

No caso de Macau, qual é o ponto da situação?

Aqui em Macau, a ideia que eu percebo das autoridades é muito a de tentar tornar o território num local que possa resolver os litígios entre empresa chinesas e empresas ou países que falam português. Não só Portugal mas todos os países de língua portuguesa, que são locais onde se regista um forte investimento por parte da China. Por exemplo, em Cabo Verde estão a construir um casino gigante, e é natural que surjam daí conflitos. O posicionamento de Macau, neste momento parece-me muito interessante e pode, neste tipo de casos afirmando-se como centro de arbitragem, tentar ser o local a privilegiar na escolha contratual enquanto centro de arbitragem.

Porquê?

Porque tem esta interculturalidade entre a China e Portugal. Acaba também por ser central aqui na Ásia no sentido em que tem boas ligações para todos os lados. É um sitio muito seguro, o que também é uma condição essencial. É fácil conseguir entrar no território. Hong Kong e Singapura são, neste momento, os grandes centros de arbitragem aqui na Ásia.

Macau tem hipótese de chegar a esse nível?

Penso que deve pensar em avançar um passo de cada vez. Macau deve agora focar-se nesta característica especial que tem no que respeita à língua portuguesa e na abertura aos portugueses. Isto pode ser um elemento facilitador na relação com países como Angola, Brasil, Moçambique, etc. . Estamos a falar de empresas e não de países, estamos a falar de litígios entre investidores e empresas locais. Mas Macau tem um forte potencial para ser um centro de arbitragem. Sabemos que as empresas chinesas são, neste momento, quem tem uma posição mais forte porque são quem tem o dinheiro e em vez de se recorrer ao centro de arbitragem chinês que é estatal e o único, seria muito mais confortável para as empresas lusófonas estarem aqui. Penso que há uma oportunidade para Macau nesta área. Mas, há um caminho longo a percorrer. Há uma grande competição entre cidades no mundo inteiro para serem sedes de arbitragem.

Trata-se também de uma espécie de estatuto?

Sim, também se trata disso de alguma forma. Ser um centro de arbitragem traz também muito negócio e muito dinheiro a vários níveis. Primeiro a advocacia, como é natural. Paris é um dos locais mais usados para arbitragem a nível mundial mesmo em litígios que nada têm que ver com a Europa. Para lhe dar um exemplo, estou envolvida num processo de arbitragem referente a um litígio entre uma empresa angolana e uma brasileira e que decorre em Paris. As pessoas envolvidas, na totalidade contando com advogados, testemunhas etc., são mais de 100 e vão passar 15 dias, naquela cidade, a ocupar um hotel e uma ou duas salas, a comer, a gastar e a dar um ambiente internacional. Trata-se de trabalho, e não de jogo o que serviria aqui em Macau para diversificar a economia porque também traz muito negócio para as cidades. É interessante este mercado de serviços que é o dos serviços de alta qualidade. Estamos a falar de pessoas que também têm dinheiro e poder de compra. Depois podemos também falar de uma série de serviços que podem ser instalados e desenvolvidos num local que acolhe um centro internacional de arbitragem e ligados a peritagem. É muito interessante ter esta posição no mundo que dá também um certo ar de modernidade. Os tribunais vão sempre existir e a arbitragem nunca os vais substituir, mas este tipo de litigância é uma litigância de futuro porque o mundo é cada vez mais globalizado.

Falou de uma fase inicial neste processo. Em que fase é que Macau está concretamente? 

Acho que Macau está na fase de consciencialização do potencial que tem neste nicho, ou seja, o de litígios entre empresas chinesas e empresas de países de língua portuguesa. Claro que só vale a pena falar disto a partir do momento em que a China se tornou a potência em que se tornou em que vamos a qualquer sítio do mundo e vemos o investimento chinês que vemos.

Macau tem trunfos que pode usar?

Sim, se for um processo feito de maneira inteligente e se perceber bem o que é este mercado. É preciso algum investimento, um investimento até elevado, e que consiste em trazer ao território as pessoas certas na área da formação por exemplo. Singapura fez isso de uma maneira exemplar. Mas se houver o apoio da China, se a China quiser, ou seja, se as empresas chinesas quiserem, acho que Macau tem mesmo um potencial brutal para ser um centro internacional de arbitragem. Há já estatísticas internacionais que dizem que cerca de 95 por cento dos contratos de comércio internacional optam pela cláusula da arbitragem.

Estamos a falar de uma proporção muito grande. Porque é que está a ser essa a opção, parece que, generalizada? 

Porque a arbitragem é um território neutro. Estamos a falar de empresas que vendem e negoceiam com o mundo inteiro. Esta dimensão por vezes é um bocadinho desconhecida porque a arbitragem também apresenta outra característica que as empresas apreciam: a confidencialidade, ao contrário dos tribunais que, por regra, são públicos. Em Portugal temos uma coisa boa actualmente: as arbitragens que envolvem empresas públicas são também públicas e qualquer pessoa pode ter acesso à documentação para que possa existir um escrutínio.

Foi recentemente votada a nova lei do arrendamento que prevê a criação de um centro de arbitragem para o sector. A medida teve um forte apoio da ala da assembleia que detém uma parte do negócio imobiliário local. O que é que isto pode querer dizer? 

Depende de como forem feitos os contratos. Se o inquilino não quiser assinar um contrato que implique a cláusula arbitral não é obrigado a ir. Agora uma das coisas que se tem de garantir nos centros de arbitragem e que consta da lei portuguesa, por exemplo, é a representatividade dos interesses dos órgãos da instituição. Se não existir essa representatividade de interesses e se estivermos perante um centro de arbitragem defendido por uma parte e por isso condicionado, isso pode realmente trazer problemas até de constitucionalidade relativamente às decisões do centro. Tem de haver garantias no processo arbitral mesmos sendo um processo privado.

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