Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Trânsito da Lucidez António Cabrita - 6 Jul 2017 02/07/2017 [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio uma longa e admirável entrevista de Susan Sontag à Rolling Stone, depois ampliada em livro, e, como sempre, há várias coisas que ela viu antes do tempo. Uma delas esta: «(…) voltando a falar de ciência, acho que um dos seus maiores feitos é o facto de que hoje, pela primeira vez na história do planeta, as pessoas têm a possibilidade de mudar de sexo». E dá como exemplo o caso de Jan Morris, um escritor de viagens britânico que em metade da vida e carreira foi homem e depois mulher, o que o fez escrever sobre Veneza a partir das duas percepções. Provavelmente a última grande aventura ontológica abissal talvez passe por esta mutação voluntária da identidade sexual. Não falo desse reajuste do corpo à representação psíquica duma sexualidade virtual e longamente desejada, como acontece na transsexualidade, mas de uma aventura infrapsíquica que explora o lado oculto de um continente subitamente iluminado. Da mesma forma que imagino que este tipo de experiência não se associa à bissexualidade, mas à dimensão distinta que só pode ocorrer com a imersão da nossa identidade num corpo outro, diverso. Em vez de irmos aos anéis de Saturno mudamos de corpo. Admito que o ser humano possa evoluir em urbanidade e empatia no dia em que, desviado da obsessão falocrática, lhe for comum atravessar ciclos de alternância na identidade sexual. Cresço como homem, sou depois transformado em mulher e volto a ser homem, até me instalar num estranhamento ao mundo que me induza a reparar nas singularidades que só uma outra percepção me propicia. Seria uma educação-para-o-outro radical mas talvez resolvesse insensibilidades profundas, um coeficiente de desatenção à vida, na sua textura plural. Estou prestes a aterrar em Lisboa, onde voltarei a comer caracóis, criatura que pode à vez ser macho e fêmea. Hei-de perguntar-lhes. Brinco, mas eu raramente brinco. Na mesma entrevista, Sontag discreteia sobre a sua viagem a Hanoi, em plena guerra do Vietname, e a sua reportagem, tão controversa, na qual não iludiu a sua perplexidade face à personalidade colectivista dos vietnamitas. E, numa demonstração de honestidade intelectual, refere: «Senti que era importante reconhecer que os vietnamitas são diferentes de nós. Não gosto dessa ideia liberal de que todos somos iguais, acho que realmente existem diferenças culturais e que é muito importante ficarmos atentos a essas coisas. Então parei de lutar para que, de alguma forma, eles fossem compreendidos e me dessem algo que eu reconheceria como um acto generoso em relação a mim, porque o seu modo de expressar generosidade era diferente do meu. Eles têm o seu modo tradicional de agir e falar e o que entendem por intimidade não é o mesmo que nós entendemos. Era como se aprendesse um tipo de respeito pelo mundo. O mundo é complicado e não pode de modo nenhum ser reduzido ao modo que você acha que deve reduzi-lo». Treze anos depois de aterrar em África subscrevo inteiramente o que ela diz. A cultura africana é-me absolutamente exterior, nele antevejo o rosto da alteridade, e felizmente aterrei demasiado tarde (com 45 anos) para ter a ingenuidade de tentar a fusão. Um dos itens que nos diferencia sustentar-se-ia na circunstância de eu, como europeu, ser filho da Revolução Francesa e do Iluminismo, mas o que nos separa é mais profundo e gramatical, e, como ela diz: o que eles concebem como intimidade, reciprocidade, amizade, responsabilidade social, fidelidade, liberdade, poder e mando, sobre o que seja a curiosidade ou para que serve o conhecimento, está nos antípodas das noções que adquiri e desenvolvi. Foi o que surpreendeu Sontag: os vietnamitas concebiam coisas muito divergentes sobre o uso a fazer da revolução, da sua liberdade e autonomia, das que a escritora americana (imbuída no espírito de uma esquerda que nunca deixa de repensar-se), havia alguma vez imaginado. E percebeu que viviam em mundos paralelos, que podiam ter intersecções, mas nunca poderiam coincidir. Respeitar isso é uma das maiores lições da vida. «Todos diferentes, todos iguais», um slogan que nasceu do multiculturalismo, foi um dos slogans mais enganosos das últimas décadas, que enfermou milhões de equívocos. Ē um slogan que nasce ainda como efeito de uma ferida narcísica, sobrevinda duma situação pós-colonial. Precisamos de reinventar os Universais, para que possamos encetar um novo diálogo, mas primeiro teremos de lucidamente aceitar a irredutibilidade do outro e só a sua assimetria em relação a nós e aos nossos valores despertará a necessidade de compreendê-lo, sendo então possível negociar uma fronteira comum, na qual as nossas diferenças não colidam. Mas facto é: as fronteiras existem. Algo muito distinto da ideia que é veiculada pelas indústrias culturais e o seu afã de uniformização global, mas isso é já outra conversa. 04/07/2017 Daqui a três dias o Boeing fará a sua manobra de aproximação a Lisboa e sobrevoarei o Tejo. Que foi para mim um grande foco de atracção porque eu cresci em Almada, na outra margem da capital. O rio representava o trânsito do desejo. E então fantasiava sobre ele, sobre a sua profundidade. Como acontece em certos troços do Nilo, menos de seiscentos metros de profundidade era algo de inconcebível para mim; espessura submarina povoada de criaturas tentaculares, assaz discretas e inenarráveis e que só em alturas de convulsão tectónica assomariam à superfície. Um dia, já nos trintas e muitos, tive acesso a uma carta do rio e foi um choque: no seu máximo de profundidade o Tejo não ultrapassa os 40 metros, e a maior parte do leito, entre o estuário e o Mar da Palha, queda-se a uns míseros 10 metros. Embriaguei-me nesse dia em que o Tejo passou a ser um alguidar. Face a uma tal decepção passou a ser difícil recuperar-lhe a dignidade. Um dia contando isto ao poeta Jorge Fallorca ele desatou numa gargalhada e acrescentou, Ē incrível como as pessoas alucinam, mas então tu quando chegas de avião nunca reparaste nas escunas e caravelas que se vêem no fundo do Tejo? Evidentemente que ele gozava comigo, mas desde aí sempre que chego a Lisboa arrisco o torcicolo no frenesim de vasculhar as naus do Fallorca.