Rodrigo de Matos, cartoonista: “Coloco-me na linha de fogo”

Rodrigo de Matos é um dos cinco cartoonistas do território no “Barcelona X Macao Art of Illustration”. Para o criador de crónicas ilustradas, rir da tragédia é importante. O cartoon é fundamental enquanto alerta para os problemas da actualidade

Tem formação em jornalismo, área em que trabalhou, mas está agora exclusivamente dedicado ao cartoon e à ilustração. Como é que esta passagem aconteceu?

É preciso perceber que não sou um ilustrador puro. Sou um cartoonista editorial. O cartoon editorial, ao contrário do que muita gente pensa, não é um tipo de ilustração. É um trabalho diferente que usa outra linguagem. A ilustração ocupa, numa publicação, um lugar especifico e que é, como o próprio nome indica, o de ilustrar e embelezar textos. Já o cartoon editorial é mais do que isso: é uma espécie de crónica de opinião, escrita numa linguagem muito própria. A minha formação em jornalismo, bem como a experiência que tive depois da formação enquanto repórter, foram muito importantes. É por isso que posso dizer que tenho um conhecimento, teórico e prático, de como é produzida a informação. Penso que sei filtrar melhor o que são os acontecimentos da actualidade, o que está por detrás de determinadas situações e as suas implicações. Isso também é uma parte fundamental do meu trabalho enquanto cartoonista. O meu cartoon é, antes de mais, um trabalho de selecção do que é importante na actualidade e do que tem potencial humorístico também. Além disso, tenho de acrescentar a ilustração propriamente dita. Em suma, o meu trabalho implica o trabalho jornalístico e editorial em que é seleccionado o que é importante e em que analiso as notícias, tenho o trabalho de criar uma piada à volta disso e depois o de conseguir transmitir a ideia com a linguagem da informação.

Acabou por fazer um curso em Madrid específico nesta área.

Sim, na ESDP de Madrid aprende-se a trabalhar com uma diversidade grande de meios analógicos e tradicionais da pintura. Foi também ali que aprendi a produzir vários tipos diferentes de ilustração para ser publicada, desde ilustração infantil a desenho realista de cenas históricas e de animais como aqueles que vemos, por exemplo, numa enciclopédia. Foi um curso muito importante porque foi muito prático e foi onde aprendi o que me faltava: ter um traço mais profissional.

Foto: Sofia Margarida Mota

Já chegou ao seu traço?

Sim, penso que sim, mas noto evolução a cada ano que passa. A graça de tudo isto também é esta evolução para que não esteja a fazer sempre a mesma coisa. Nos últimos anos fiz um esforço de conversão ao digital total. Já no final do curso, em Madrid, demos umas bases de utilização do Photoshop para o tratamento de desenhos feitos em papel. Quando comecei a trabalhar profissionalmente com cartoons, todo o meu trabalho era feito sobre papel, com canetas e lápis: primeiro era o esboço com lápis, depois com lápis azul e depois com uma caneta especial. Era um processo que envolvia três folhas de papel que depois digitalizava e coloria. Actualmente, já há uns tablets muito bons em que desenhamos sobre o ecrã e que são muito semelhantes ao papel. A tecnologia também já evoluiu tanto que a sensibilidade destas canetas digitais está muito próxima, se não mesmo melhor, do que as canetas tradicionais. Esta evolução tem sido muito positiva porque vejo que o meu trabalho não perde nada quando feito digitalmente, sendo que até pode ganhar.

Recebeu, em 2014, o Grand Prix do Festival Press Cartoon Europe, na Bélgica. Em que é que este reconhecimento internacional projectou os seus desenhos?

É difícil avaliar até que ponto isso aconteceu, mas penso que terá acontecido. Um prémio desses é uma coisa que valoriza muito qualquer currículo.

Quais são as suas referências editoriais?

Sou, desde sempre, um grande apreciador daquilo a que se pode chamar da escola norte-americana de cartoons. Os trabalhos que são publicados na imprensa de referência dos Estados Unidos da América têm uma linguagem e um humor típico que me influenciam muito.

Como é que poderia caracterizar essa linguagem?

É um pouco redundante falar em humor inteligente porque penso que todo o humor tem de ser inteligente. O humor implica uma actividade cerebral que leva à compreensão da piada. Os americanos são muito influenciados por uma escola associada à stand-up comedy de qualidade. É um humor mordaz e sarcástico e que não explica a piada, não dá tudo ao leitor. O que os cartoonistas americanos fazem, e que eu também procuro fazer à minha maneira, é contar uma história dando só um pequeno momento, aquele momento chave que é suficiente para perceber tudo o que se quer contar.

Muitas vezes os cartoons pegam em situações trágicas da realidade. A estas situações junta o humor. Como é que lida com esta ligação?

Ainda hoje, sempre que faço um cartoon acerca de um determinado tema mais triste, como um ataque terrorista com vítimas mortais, há sempre alguém que diz que o meu trabalho é de mau gosto. Penso que é uma questão muito cultural. Ainda achamos que o riso ofende, que o riso é uma coisa feia, proibida e má. Temos uma visão muito negativa do humor que, penso, nos é transmitida pela nossa cultura judaico-cristã. É um erro que pode ter tendência a ser corrigido nas próximas gerações, se o mundo evoluir numa direcção interessante. As pessoas têm tendência em confundir o tema da piada com o alvo da piada. Quando faço um cartoon acerca de um acontecimento com mortes, ou sobre uma doença que está a matar crianças, o que pretendo não é ridicularizar as vítimas, não é humilhar quem sofre. A intenção do cartoon é chamar a atenção para o que está mal. Quanto mais grave a situação é, mais pede um cartoon. O que se pretende, quando se faz este tipo de trabalho, é que as pessoas se indignem com o que está mal. O cartoon aponta o dedo aos paradoxos da condição humana. Se isso pode provocar o riso, é para que nos possamos também rir de nós. A nossa cultura, especialmente quando se fala de morte, tem um preconceito enorme. A morte é um grande tabu, é intocável. Não se pode falar dela, não se pode brincar mas, na realidade, a morte faz parte da vida, é a sua parte final. Quando um trabalho meu tem esse tipo de reparo, quando é considerado uma coisa de mau gosto só porque aborda o tema da morte ou do sofrimento das pessoas, procuro não me deixar perturbar. A verdade é que o meu trabalho é sempre susceptível de críticas. Coloco-me na linha de fogo. Um cartoonista, faça o que fizer, seja qual for o tema, vai ofender sempre alguém. Mas nem sempre a pessoa que se sente ofendida tem razão. Cresci a ouvir que não devia brincar com coisas sérias e nunca concordei com isso. Até hoje tenho tentado provar o contrário: as coisas sérias são coisas com as quais devemos brincar e que devemos abordar de todas as formas.

Que temáticas mais gosta de abordar?

Gosto precisamente das que são mais problemáticas porque representam um desafio maior. É arranjar uma piada no drama. Há sempre um lado irónico nas coisas. Uma situação trágica em que há várias mortes sem razão é uma coisa muito difícil. Mas são também estas situações que encerram em si uma ironia e um paradoxo muito grande. Estas características estão inerentes ao actual momento da nossa civilização. Somos tão avançados, somos capazes de realizações tecnológicas incríveis e, ao mesmo tempo, ainda aqui andamos a matar-nos por causa de homens invisíveis.

Veio para Macau em 2009. Como é que esta vinda para o Oriente influenciou o seu trabalho? 

Macau apareceu na minha vida por acaso. Estava em Lisboa, tinha a colaboração com o jornal Expresso e vim cá visitar um amigo. Com a oportunidade de trabalhar aqui fiquei dividido. Acabei por optar por ficar em Macau precisamente por achar que teria um potencial de conhecimento maior se aqui ficasse. Pensei também em aprender a língua chinesa, um projecto que ainda não consegui concretizar. Ao tentar perceber uma cultura tão diferente da nossa, acabamos por ficar sempre mais ricos e por perceber melhor o próprio ser humano.

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