Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasA nódoa negra da nossa idiossincrasia Manuel Afonso Costa - 1 Jun 2017 Aires, Matias (1705-1763), Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, Fundação Biblioteca Nacional, Lisboa, 2007 Descritores: Literatura Barroca, Ensaio, Século XVIII, 288 p. ; ISBN: 9788533304529 Cota: 821.134.3(81)-4 Air “A ambição dos homens por uma parte, e pela outra a vaidade, tem feito da terra um espectáculo de sangue: a mesma terra que foi feita para todos, quiseram alguns faze-la unicamente sua” [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]atias Aires mau grado as coordenadas do barroco mental que acompanham permanentemente as suas reflexões pensa e algumas vezes pensa muito bem. E por isso não é fácil isolar na sua obra a explicitação de um paradigma temático de uma forma escorreita e límpida. Prevalece alguma promiscuidade entre pressupostos ideológicos barrocos e pressupostos ideológicos clássicos. Quando por exemplo ele diz que «a solidão nos desterra para a solidão do ermo», ele analisa o evento segundo a ideia clássica horaciana de que «nunca podemos fugir de nós», mas ao mesmo tempo o que ele identifica como a nossa sombra negra é a barroca ilusão e vaidade, de tal modo que “somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta”, querendo com isso dizer que ælun, non animum mutant, qui trans mare currunt. Aquilo que em Horácio é assumido como uma especificidade própria da condição humana substantiva, torna-se em Matias Aires um elemento de reforço do dispositivo barroco. Para Matias Aires o que nos persegue é a vaidade, nódoa negra da nossa idiossincrasia, enquanto que para Horácio o que nos persegue é simplesmente nós-mesmos, a nossa idiossincrática auto-individuação, independentemente desta ou daquela virtude. E de tal ordem é assim que a possibilidade do retiro integral não é admissível em Matias Aires. Todas as modalidades de retiro não se adaptam ao modelo do ensaísta português de Setecentos. Para ele o retiro absoluto não é possível porque ao “deixarmos livremente o comércio dos homens, não renunciamos o viver na admiração, e notícia deles”, o que significa que “consentimos em apartar-nos de sorte, que nunca mais sejamos vistos, mas não consentimos em não ser lembrados”. O dispositivo ideológico através do qual Matias Aires concebe a sua antropologia persegue os seus pensamentos. Para Matias Aires o retiro é uma dissimulação, não um retiro de facto, é uma representação teatral, é uma máscara. E é a máscara e a encenação que persistem com o seu valor ontologicamente dramático e não o retiro que deveria significar o que de facto significa no classicismo, assunção de modéstia, de humildade, de procura regenerativa da vida simples, discreta. Não é a lathe biosas epicurista (vida discreta e simples), que fundamenta este retiro, não é a completa separação e rejeição do modelo da ubris ou culto do excesso. A ubris é o que persegue o homem desesperado no seu exílio encenado. Falta aqui um ingrediente determinante do modelo da mediania: a tranquilidade que só advém por intermédio da realização da sabedoria clássica ou estóico-epicurista da phronesis e da sophrosyne. Eu sei que Matias Aires desenvolve o seu modelo sob uma forma crítica. A sua análise é realista e não idealista. Mas o simples facto de não conceber uma alternativa mostra o quanto está prisioneiro do seu próprio quadro conceptual. O realismo, que de resto é próprio do barroco, não deixa entrever a possibilidade de uma escapatória. O seu pessimismo de fundo sapa tanto a possibilidade da eutopia quanto da utopia. A verdade é que o que fomenta o retiro clássico, quer dizer salvífico e regenerativo, é a rejeição da ubris e esta no dispositivo clássico é profundamente marcada pela sua imbricação com o problema do mal. Desde a conceptualização ontológica, metafísica e religiosa do limite e da ordem até à definição do papel ético-moral da medida, que culmina no sacrossanto apotegma apolíneo do ne quid nimis (nada para além da medida), é sempre o bem e o mal que estão no horizonte. Ora em Matias Aires é o binómio conjuntivo ilusão / vaidade que enforma a sua aproximação teorética. O que quer dizer que lhe falta desde o princípio um modelo conceptual decisório, e analítico, que pela sua natureza se encontre acima do material em análise. Matias Aires julga questões morais com conceitos morais, procura compreender uma realidade empírica através da operatividade de ferramentas empíricas. Não há separação entre o modelo e a realidade, logo o seu esforço de desconstrução não é verdadeiramente operatório. Ele diz por exemplo: “A vaidade é cheia de artifício, e se ocupa em tirar da nossa vista, e da nossa compreensão o verdadeiro ser das cousas, para lhes substituir um falso, e aparente”. Nada se passa no plano ontológico ou metafísico, mas apenas no plano das consequências fenomenológicas da crise aberta pela ruptura com o paradigma da permanência e da estabilidade. A crítica e a condenação da ubris no barroco resulta do facto de que tudo é aparente, vão, ilusório, etc. enquanto que no classicismo a ubris simboliza o mal. E é só porque é o mal que a ubris configura uma ilusão, ou melhor um nada, um não-ser. O classicismo valoriza o texto, a substância e o barroco valoriza a cenografia, e o décor. A opção pela aparência desloca logo a questão do plano ontológico para o plano fenomenológico, sendo que esta fenomenologia não é hermenêutica mas gnoseológica. O mundo não possui uma alma que é enganadora ou não, uma vez que é da natureza da alma do mundo ser enganadora. Trazendo o que deveria ser um epifenómeno para o centro do debate gnoseológico o barroco dessubstancializa o problema do bem e do mal na sua raiz metafísica e assim acaba a explicar o equívoco pelo equívoco, a falha pela falha, a máscara pela máscara até ao infinito. Um jogo de espelhos, um labirinto. Não há fuga possível do labirinto, não há retiro possível do mundo. O retiro é uma aparência de retiro. E não é assim por acaso que o problema do mal seja profundamente relativizado. “É raro o mal, de que não venha a nascer algum bem, nem bem, que não produza algum mal”. A única fuga concebida por Matias Aires é uma ascética fuga de nós-próprios, isto é das nossas paixões. O neo-estoicismo do barroco informa aqui o pensamento do nosso autor. Neste domínio Matias Aires é um autor previsível. A presença de Santo Agostinho no seu ideário empurra-o para uma análise de tipo voluntarista em que finalmente aparece a questão do mal agora já indissociável do pecado, da queda e da culpa. Nem sinais de classicismo e de argumento onto-gnoseológico. Pelo contrário sente-se a presença do video melior proboque de Ovídio, das reflexões de Santo Agostinho, das Epístolas de S. Paulo, em particular a Epístola aos Romanos, e da Medeia de Eurípedes, entre muitas outras reflexões que colocam o mal no plano de uma oscilação da vontade ditada pela condição miserável do homem. Oscilação que o autor enfatiza de modo explícito: “Parece que cada um de nós tem duas vontades sempre opostas entre si; ao mesmo tempo queremos, e não queremos; ao mesmo tempo condenamos, e aprovamos; ao mesmo tempo buscamos e fugimos, amamos e aborrecemos, Temos uma vontade pronta para conhecer, e detestar o vício; mas também outra pronta para o abraçar”. Mas no essencial a nossa natureza propende para o mal, o que significa que triunfa em nós a vontade má, a concupiscência. A nossa vida consiste em combater esta má inclinação. As paixões, quer dizer a carne são o nosso inimigo, até porque a carne não é frágil só por um princípio, mas por muitos”. Biografia Matias Aires Ramos da Silva de Eça nasceu no Brasil, a 27 de Março de 1705, vindo a falecer em Lisboa a 10 de Dezembro de 1763). Filho de José Ramos da Silva e de sua mulher Catarina de Orta, nasceu como já vimos no Brasil, na Capitania, depois Província e hoje Estado de São Paulo. Foi Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, obtendo e sucedendo neste emprego a seu pai, José Ramos da Silva, por sua morte. Foi Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Ciências e Mestre em Artes pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Formou-se numa Universidade Francesa em Direito Civil e Canónico. Fez estudos de Matemática e Ciências Físicas. Conhecia o Hebraico e outras línguas. Foi em 1716 que acompanhando seus pais se mudou para Portugal, tendo ingressado no Colégio de Santo Antão. Em 1722, estudou nas Faculdades de Leis e de Cânones de Coimbra, onde recebeu o grau de Licenciado em Artes, graduando-se mais tarde na cidade de Baiona, na Galiza. Foi notável literato e naturalista e grande amigo do malogrado António José da Silva, o Judeu, que procurou ardentemente salvar da fogueira, o que não conseguiu. Escreveu obras em Francês e Latim e foi também tradutor de clássicos latinos. É considerado por muitos o maior nome da Filosofia de Língua Portuguesa do seu tempo, o que não era muito difícil tendo em conta a pobreza franciscana da nossa cultura filosófica e literária do século XVIII. Só, talvez António Soares Barbosa, autor de um tratado de filosofia moral, mas que é também um tratado jusnaturalista, se lhe pode comparar. Enfim, há Verney, Teodoro de Almeida e Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, mas que para mim são autores menores, pois lhes falta originalidade e arrojo. Em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, cuja primeira edição é de 1752, o autor tece suas reflexões a partir do trecho bíblico extraído do Eclesiastes: Vanitas vanitatum et omnia vanitas, ou seja, “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Como um dos exemplos da vaidade dos homens, é citada a sumptuosidade dos mausoléus. Inocêncio Francisco da Silva informa no seu dicionário que “Quanto à data de seu óbito é por ora ignorada, sabendo-se contudo que já era falecido no ano de 1770”. Ernesto Ennes informa data de 10 de dezembro de 1763, a partir de documentação comprobatória. O Dicionário Biobibliográfico de Autores Brasileiros informa a mesma data.