Maria de Deus Manso, investigadora: “A expansão [dos Descobrimentos] foi essencialmente cultural”

 

Os Descobrimentos levaram Portugal pelo mundo e o mundo de regresso a Portugal, mas também colocaram todas as culturas por onde fomos passando em contacto. O império levou Macau ao Brasil, Goa a Luanda, Lisboa a Hoi An. A professora Maria de Deus Manso faz-nos uma visita guiada pela confluência cultural que se originou na expansão lusa além-mar, em particular através da influência da Companhia de Jesus nos territórios ultramarinos

 

Qual a importância dos jesuítas na expansão do Império Português?

A Companhia de Jesus, desde a sua fundação, foi uma ordem fundamental para consolidar todo o processo de expansão e colonização portuguesa. Era uma instituição que trabalhava ao lado da Coroa. No século XVI, o Rei e a Igreja, principalmente a Companhia de Jesus, uniram-se para consolidar esse projecto. É uma ordem do período moderno, surge já com a preparação e os objectivos de partir para missão não só a nível ultramarino, como também na própria Europa. Mas no império ultramarino foi onde eles mais se destacaram. Uma das características da ordem é a mobilidade permanente, podem começar em Macau, mas partir daqui para outras áreas do império. Assim como de outras áreas para Macau. Eles não vêm, ficam e morrem aqui.

Tiveram muita importância na fixação de Portugal em Macau.

Foram fundamentais para a estruturação da colonização e a presença portuguesa no Oriente. Uma coisa era Macau e a sua presença aqui. Uma vez que a presença portuguesa era consentida, não tinham dificuldade em se instalarem. Outra coisa era irem até Pequim. Havia uma rejeição relativamente aos europeus, era extremamente difícil fixarem-se. A Companhia de Jesus tem a característica da adaptação; sabendo eles da dificuldade que tinham na conversão da China, optaram por se adaptarem. A missionação era extremamente difícil, passava sobretudo pelo ensino, pelos conhecimentos que tinham de matemática e astronomia. Perante isto, conseguem instalar-se na Corte, são aceites não só pelos conhecimentos, como também porque em termos visuais adaptam-se àquilo que eram os costumes e as tradições locais. Isto fez deles uma ordem com grande sucesso. Se pensarmos em termos de expansão, havia a questão do padroado português, ou seja, a Coroa portuguesa ao conquistar tinha como obrigação missionar esses mesmos espaços.

A adaptação parece uma boa cartada política por parte dos jesuítas.

Claro, é óbvio. Se as autoridades portuguesas ali estiverem eles tinham facilidade em impor tanto a língua, a doutrina, como até as tradições. Embora nunca haja uma pureza, digamos assim, daquilo que se pretende que seja as sociedades. Isto é, a cultura portuguesa irá alterar-se quando chega a qualquer local, irá absorver elementos de outras culturas. Aquilo a que hoje chamamos de mestiçagem, que não é apenas biológica, é também cultural, religiosa, etc.. Mas em regiões onde não há uma conquista com poder político instituído, não há quem proteja a Igreja, eles tinham de contar com as suas próprias capacidades. Isso passaria pela própria adaptação às culturas em que se inseriam.

Nas suas visitas frequentes a Macau, que vestígios vê da Companhia de Jesus pelas ruas?

A cultura que hoje vemos em Macau é a de uma sociedade mista, onde há confluência de muitas culturas e uma delas é a portuguesa. Não só a língua ainda permanece, mas também a religião. O catolicismo instalou-se aqui e isso dita, certamente, tradições e comportamentos que fazem com que se crie uma identidade que separa esses convertidos ao Cristianismo da restante população. Ainda que nas primeiras gerações não fossem convertidos de fé, isto é, não estavam suficientemente preparadas para o exercício do Cristianismo, à medida que vão aceitando e convivendo com locais da Companhia, vão aprendendo a língua e a doutrina também. Essa diferença vai separar. Vemos a separação e certamente a cultura em muitas componentes, desde a maneira de vestir, à culinária, à arrumação da casa.

Que exemplos destaca da adaptação dos jesuítas aos costumes locais?

A questão do vestuário. Se eles aparecessem vestidos de jesuítas, todos negros, eram facilmente identificados. Não é que estivesse na cabeça das pessoas a pertença a determinada ordem, mas aquela pessoa era alguém estranho às suas culturas, era um ocidental. Regra geral havia sempre a rejeição face ao outro, de ambas as partes. Se eles não fossem aceites, não fossem inseridos nas comunidades, como é que conseguiam estabelecer um diálogo, um contacto?

Era uma forma algo diplomática de agir.

A adaptação, neste sentido, é uma sobrevivência, a única forma que têm de ser aceites, algo que passa pelo vestuário e a alimentação, por exemplo. O choque cultural não era apenas pela fé, pela religião em si, mas pelas consequências que o Cristianismo e a conversão poderiam trazer às populações. Um cristão podia assumir uma identidade diferente, comportamentos diferentes e até afastar-se da sociedade onde estava inserido. As autoridades locais também não gostavam disso. Os cristãos assumiam alguma importância social porque, como sabemos, nalgumas sociedades a mobilidade praticamente não existia, como vemos por exemplo na Índia com o sistema de castas. Mas com o Cristianismo essa mobilidade poderia acontecer. Isso trouxe alguma desestruturação às sociedades onde as missões se estabeleceram. Houve uma reacção também à praxis do Cristianismo, isso torna-se notório se pensarmos numa sociedade poligâmica onde a religião se tenha instalado. Isso faz com que muitas das vezes tivesse havido perseguição e hostilidade face aos cristãos, em consequência dos comportamentos impostos às sociedades.

O que entende por circularidade cultural?

Durante muito tempo pensou-se que tudo isto estava separado, ou se ia para o Atlântico, ou se ia para o Índico; apesar de tudo ser navegável, entendia-se que as coisas estavam estanques. Isto é, não havia comunicação entre um império vastíssimo, uma rede. Temos, de facto, uma presença oficial, mas depois temos uma presença privada que se espalha, que ultrapassa em muito aquilo que entendemos como o dito império oficial. Há uma circulação. Os missionários não se fixam e vivem uma vida inteira numa única região. Eles circulam, assim como os mercadores, até os próprios escravos que transportam também uma cultura. Não só absorvem a cultura onde se vão inserir, como eles próprios transmitem a sua cultura. Fala-se pouco da escravatura asiática, que não teve a mesma dimensão da africana, mas houve também. Essa circulação transporta pessoas, mas transporta também uma cultura. Passa pelo saber, pela língua e religião, mas também plantas, sedas, materiais de decoração, como as lacas, por exemplo.

O que se sente de Macau, por exemplo, no Brasil?

Há dois locais no Estado da Bahia, afastados da capital Salvador, onde a influência também chegou. A 120 quilómetros de Salvador – hoje não é longe mas no século XVII era longínquo –, situa-se Cachoeira e o Seminário de Belém, que foi construído pelos jesuítas. Aí encontramos elementos orientais. Na chamada, agora, Igreja do Carmo em Cachoeira temos cinco Cristos chineses. Sabemos que o Porto de Salvador era importantíssimo, tinha uma grande ligação com Goa e Macau, daí não ser estranho encontrarmos os enormes cristos chineses, assim como um grande armário oriental. Como é que isto foi lá parar? Quem foram os artistas que fizeram estes Cristos e este armário? Também no Seminário de Belém o tecto da sacristia está todo decorado com motivos e flores orientais. Isto são dois elementos bem visíveis de como a arte e os artistas circulavam. Se os Cristos têm aspecto chinês não terão sido, certamente, cristãos europeus a terem feito estas peças. Também temos marfins orientais que circulavam por estas regiões. Temos também toda a fauna e flora que vai daqui para lá, que hoje é tida como brasileira. Por exemplo, o coqueiro veio da Índia. O chá veio do Oriente e ganhou muita importância. A expansão não foi só militar, não foi só económica e política, ela foi, essencialmente, cultural.

À luz dos seus estudos, o que encontra nestas ruas sempre que vem a Macau?

Encontro a História e Portugal. Gostaria de encontrar mais a língua portuguesa, de facto as ruas estão escritas em português, mas lamento muito que na Universidade de Macau o português não tenha sido opção. Acho que houve algum descuido relativamente à língua. Mas, nalgumas zonas de Macau, não digo nas zonas dos casinos, sinto que estou em ruas que são, efectivamente, portuguesas. Não só pelas igrejas, mas também pela calçada portuguesa, o azulejo, a Misericórdia, que era uma instituição portuguesa e que acompanhou todo o processo expansionista português.

O que tem de especial a portugalidade que deixa tantas marcas por onde foi passando?

As missões jesuítas não ficavam apenas onde estava a presença portuguesa. Levam a cultura e a língua a outras partes do globo. Se formos ao Vietname encontramos presença portuguesa, assim como Malaca, Timor e por aí fora. O projecto imperial teve uma faceta muito violenta porque impôs a cultura, que muitas vezes não foi aceite pacificamente, mas que resultou de uma conquista, ou de outros interesses económicos das autoridades locais. Se pensássemos apenas no projecto territorial, com conquista militar, com uma estrutura política similar à que tínhamos em Portugal, tudo com o objectivo apenas de fazer comércio, sem mais nenhuns contactos, não teria cá ficado o português, nem a religião, nem a arquitectura, etc.. Essa presença é, efectivamente visível em Macau.

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