Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasDuelo de gigantes: Ernest Hemingway, “O Velho e o Mar” Manuel Afonso Costa - 30 Mar 2017 Hemingway, Ernest, O Velho e o Mar, Livros do Brasil, Lisboa, 2011 Descritores: Literatura Norte Americana, Tradução e Prefácio de Jorge de Sena, Ilustrações de Bernardo Marques Cota: 82-31 Hem [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] propósito, além de Fitzgerald, Hemingway privou com Ezra Pound (1885 – 1972), e Gertrude Stein (1874 – 1940), sendo um dos membros da comunidade de escritores expatriados em Paris conhecida como “geração perdida”, nome inventado e popularizado por Gertrude Stein. Entre todos talvez tenha sido Gertrude Stein, que, pelo seu estilo, mais tenha influenciado o escritor Hemingway. Há um facto que me intriga e deixo aqui à discussão. Estou a pensar na hiperbólica fama de Hemingway. Ele é provavelmente o escritor oriundo dos Estados Unidos, mais popular e mais conhecido. É um verdadeiro fenómeno mediático à escala internacional com simpatias em todos os continentes. Foi um grande escritor, sem dúvida, mas quer pelo volume da obra ou pela sua qualidade, terá sido superior a Twain, muito mais antigo, mas também Faulkner, Fitzgerald, Steinbeck, Salinger que são autores da mesma época, com excepção de Salinger que é um pouco posterior e havendo ainda Melville, Burroughs, Bellow, todos em épocas diferentes mas igualmente icónicos para as suas épocas. E se pretendermos explorar o tema da vida aventureira a questão é a mesma não faltam na literatura americana vidas exemplares desse ponto de vista. Mas reconheço que nesse plano Heminngway seja insuperável sobretudo pela imensa variedade de lugares, paixões e não me refiro apenas às paixões amorosas, actividades etc. Dever-se-á ao facto de ter desenvolvido uma técnica narrativa muito enxuta, quase cinematográfica, “onde as personagens se movem em quadros e os detalhes mais pormenorizados se evidenciam apenas na estrutura da narração”? Penso que o segredo estará na intersecção de tudo isto. Escolhi escrever sobre O Velho e o Mar, para começar a escrever sobre Hemingway. Tinha lido alguns contos, bons, e o Adeus às Armas que não me entusiasmou por aí além. Como procuro sempre uma razão, ou mais, para o entusiasmo ou para a decepção, pequena ou grande, provavelmente terei que admitir que tendo o Adeus às Armas (1929) sido mais ou memos contemporâneo do Viagem ao Fim da Noite de Céline (1932) e tendo eu gostado incomparavelmente mais de Céline, que achei mais moderno e literariamente mais poderoso, do ponto de vista narrativo, mas também, no plano semântico e da modernidade. O Viagem ao Fim da Noite é um romance de vanguarda para a sua época, modelo tal como o autor, não só por este romance mas pelo conjunto da obra, para a Beat Generation, que contudo não produziu nenhum escritor da grandeza de Céline. Mais tarde com a Morte a Crédito Céline afirma-se como um escritor muito à frente do seu tempo. Um génio, portanto, que nem a atoarda de Sartre querendo fazer crer que ele teria colaborado com Hitler, o que é mentira, ofuscou a grandeza e carácter inovador da sua obra. Nada disto descobri em Hemingway, quando li o Adeus às Armas. Mas adiante. Regressemos ao Velho e o Mar e façam-se as perguntas certas, para ver o que é que o pequeno texto tem para nos dizer. Porém começo pela história, antes de mais. A personagem principal são duas, um peixe, um grande peixe parece um espadarte, isso sem dúvida e Santiago, velho pescador cubano de à volta de 80 anos que não consegue pescar nada há 85 dias. Será da velhice, o seu amigo e grande admirador, o jovem rapaz Manolim, diz-lhe que não. Diz-lhe que não e irá mantê-lo mesmo quando as coisas se complicarem ainda mais, tal é o seu respeito, admiração e amor pelo velho. E sobretudo fé nas suas qualidade e na sua experiência. Lá mais para o fim da história fará mesmo menção de passar a pescar com o velho, pois este é simplesmente o melhor. Se não é a idade então o que é. Para o rapaz e sobretudo para o velho, de antes quebrar que torcer, só pode ser o azar ou a falta de sorte como se preferir. O velho não é apenas velho, é doente de mazelas várias, o que não é nada anormal, o próprio Hemingway, na época em que escreve O Velho e o Mar é já hipertenso, diabético e sofre de depressão e hemocromatose, sendo que esta é que é a grande responsável pelo resto de toda a morbidez. Hemingway, sabe o que é a dor e o sofrimento, o enfraquecimento e o desalento que a doença pode provocar. Mas mesmo assim, com o seu cancro de pele e as tonturas, o velho lobo do mar luta contra a sua sorte e num desses dias de ir ao mar dá-se o que se pode considerar o encontro de uma vida, assim o narra o velho, o encontro com aquele espadarte de mais de cinco metros e de pelo menos 700 quilos. Vai ser uma luta sem quartel, uma luta que só não é olhos nos olhos, face a face, frente a frente por causa do elemento mediador, o mar e a sua profundidade, embora a espaços os seus olhos se tenham cruzado com um misto de espanto, de temor e de respeito. É uma luta de gigantes, dignos um do outro, esta, entre um belo exemplar da dignidade da natureza e um bom exemplar da humanidade. É uma luta sem quartel e sem direito a compaixão, mas as apóstrofes que o lobo (humano) dirige ao peixe são comoventes e de uma altíssima humanidade, mas ainda assim, sem compaixão. É uma luta de vida ou de morte e que ganhe o melhor. Num certo momento o peixe, que arrasta o pescador e o barco para o alto mar e para uma profundidade calculada, vem à superfície e de um salto fixa com o olhar o seu predador. Tudo parece conduzir a uma espécie de consciência animal instintiva, homóloga da humana consciência intelectual e raciocinante. É tudo isto que o velho narra as mais das vezes num solilóquio monótono mas para o leitor arrebatador. A partir da página 39, se não me engano, o romance, se assim lhe posso chamar, pois me parece sobretudo um conto, torna-se imparável e foi o que me aconteceu, só parei sessenta páginas depois quando Hemingway deu por terminada a história. Se a luta entre o pescador e o peixe, as suposições mútuas, as suspeitas por reenvio sistemático, como se fossem lógicas na medida em que o pescador se aproxima do peixe e faz o peixe aproximar-se do pescador, um naturaliza-se e o outro humaniza-se, só assim a luta se tornou numa luta entre iguais, em respeito, em amor quase, mas sem contemplações, sem compaixão, repito, uma luta até ao fim. Ou o homem acaba por matar o peixe como é sua vontade e seu destino, ou o peixe acaba por destruir o homem, porém dirá o autor, sem o vencer, pois um homem pode ser destruído, mas jamais vencido. “Esta é a história de um homem que convive com a solidão, com seus sonhos e pensamentos, sua luta pela sobrevivência e a inabalável confiança na vida”. É bem verdade que “A história de Hemingway representa a luta que o homem trava para a sua sobrevivência e os aspectos que influenciam essa luta como a experiência, a persistência, a confiança, a amizade e também a sorte”. Mas não é menos verdade que o peixe luta pela sua mesma sobrevivência e mais radical ainda pois é contra a morte que luta e também ele conta com a sua experiência, persistência e ainda sorte. O peixe não saberá o que isso é, mas tudo está cegamente amalgamado no seu instinto vital. De qualquer forma apesar da ligeira superioridade instrumental do velho, se atendermos ao meio em que o combate se trava, favorável ao peixe, podemos dizer que se trata de uma luta justa e digna. A narrativa exacerba a resistência tenaz que o peixe oferece e as dificuldades físicas do velho, para equilibrar os pratos da balança. Na parte final, depois de ter vencido o peixe e o ter amarrado ao dorso do seu barco, o velho pescador vai ter de se haver com um predador sem escrúpulos, os tubarões que se vão revezando até não ficar do peixe senão a sua carcaça. É com um esqueleto que Salvador chega completamente extenuado à praia e finalmente à enxerga da sua cabana. A luta final desesperada e condenada à derrota é uma luta desigual e inglória. Os únicos momentos de catarse moral acontecem quando Salvador defendendo com galhardia e heroísmo a sua presa consegue matar alguns tubarões, usando para tal todos os seus recursos, embora nós pressintamos desde o início qual seria o desenlace, que em última análise também acaba por ser justo. Fiel ao pessimismo de Hemingway, que Jorge de Sena procura atenuar, senão mesmo negar no prefácio, e que a mim me parece iniludível até por que são várias as metonímias e parábolas confirmativas do seu pessimismo etológico, ao longo do texto: as andorinhas do mar, os ouriços marinhos, as tartarugas, os peixes voadores e os respectivos assassinos, os falcões sobretudo, mas todos, pois no mar todos podem ser algozes e vítimas. Ninguém está a salvo. E pergunto eu e no seio da humanidade alguém estará a salvo no meio de predadores ainda mais sofisticados!? Mas no mar, não há ética, nem moral que possam salvar. A própria ética e moral plasmada na luta titânica entre o pescador e o peixe, é uma moral e uma ética à superfície e válida no plano das regras formais de um certo cavalheirismo, pois algures numa zona mais profunda e mais irracional e é aí que mergulha a vida e os seus poderes básicos e primários, todos os princípios soçobram, mesmo, infelizmente, os humanos entre os homens. Para voltar a Céline é evidente que o pessimismo em Hemingway não é tão truculento, radical, cínico e desapiedado como no autor francês, nem tão metaforicamente cruel como por exemplo em Tennesse Williams, no texto Bruscamente no Verão passado, mas é uma forma de pessimismo, ainda assim. Do ponto de vista do estilo, o de Hemingway, tornou-se paradigmático. O autor usa um estilo directo, sem quaisquer artifícios literários, quase pobre nos seus recursos, mais aparentemente pobre do que realmente pobre. Hemingway tinha a escola jornalística, que há que reconhecer, foi muito útil para domesticar os excessos do fluxo de consciência. Alguém definiu Hemingway como sendo o animal falante, pejorativamente, no sentido de caracterizar alguém que usa uma narrativa quase infantil. Mas o famoso crítico literário Cyril Connoly afirmou a propósito deste texto : “Leia o livro O Velho e o Mar imediatamente. Após alguns dias, leia-o novamente e irá verificar que nenhuma página desta bela obra-prima poderia ter sido escrita melhor ou de forma diferente”. Melhor elogio não se pode fazer. E este é o estilo de Hemingway, aquele que o imortalizou, sobretudo nos contos de A Capital do Mundo, de 1936. A história vive de si mesmo, o narrador não acrescenta nada da sua lavra e diz portanto o que as cenas exigem para ficarem objectivamente bem descritas. As caracterizações das personagens são sumárias, os enredos explícitos e intuídos desde o início. Não é de suspense artificial e grandes surpresas que vive a intriga e contudo a narrativa agarra-nos. Que mais se pode dizer. E neste conto a receita é a mesma: O mar e a sua fauna vivem esplendorosamente (…) “Mas vivem sem a mínima poetização panteísta, sem a mínima deliquescência antropomórfica”. Alguns escritores, alguns narradores, procuram deixar nas suas obras a marca do seu virtuosismo, poético e literário, Hemingway pretende esconder-se por detrás da história que se vai desenvolvendo quase por si através de um descritivismo objectivo. Hemingway dissimula-se e ninguém dá por ele. Não há digressões psicológicas, culturais ou intelectuais, análises complexas, pelo contrário poderíamos até condenar a assunção por vezes de uma total insignificância. Hemingway mostra o que está a acontecer sem procurar narrar como se a narrativa correspondesse a uma metalinguagem ou explicação de segundo grau. Ou se gosta ou não se gosta. “A abolição do melodrama exprime-se no olhar despojado do narrador e na exiguidade da acção”. Sinopse e Ficha Crítica de Leitura Ernest Miller Hemingway nasceu em Oak Park no dia 21 de Julho de 1899 e suicidou-se com uma espingarda de caça em Ketchum no dia 2 de Julho de 1961, depois de uma vida das mais acidentadas, variadas e aventureiras da História da Literatura. Casou quatro vezes, tendo filhos de pelo menos duas mulheres, teve amantes e não parou muito tempo em lugar nenhum embora houvesse lugares aos quais regressava religiosamente como Cuba e Espanha. Trabalhou como correspondente de guerra em Madrid durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), tomando deliberadamente partido pelos republicanos e dessa experiência inspirou-se para escrever o clássico, entretanto logo passado ao cinema, Por Quem os Sinos Dobram, com Ingrid Bergman e Gary Cooper. No fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), instalou-se em Cuba. Poucos anos antes do suicídio, escreveu O Velho e o Mar que é segundo alguns critérios a sua obra prima. Com ela ganhou o Prémio Pulitzer de Ficção, em 1953 e o Prémio Nobel da Literatura em 1954. Há muitos elementos da sua obra que remetem para uma dimensão autobiográfica, Espanha, Paris, Cuba, a Guerra Civil, a Primeira Guerra Mundial, etc. Em Itália durante a Primeira Guerra Mundial, onde serviu como motorista de ambulância na Cruz Vermelha, apaixonou-se pela enfermeira Agnes Von Kurowsky, que viria a ser sua inspiração para a criação da heroína de Adeus às Armas de 1929, a inglesa Catherine Barkley. O seu segundo casamento em 1927 foi com a jornalista de moda Pauline Pfeiffer, com quem viria a ter dois filhos, mas as outras paixões da vida, os touros, a caça e a pesca levavam-no para longe dos lares que ia construindo e na época em que ainda vivia com Pauline, apaixonou-se, em Cuba, por Jane Mason, que era casada com o director de operações da Pan American Airways. Hemingway e Jane tornaram-se amantes. Porém em 1936, apaixonou-se de novo, desta vez, pela jornalista Martha Gellhorn, e esta nova paixão conduziu-o ao seu segundo divórcio. Com tantos casamentos, divórcios e paixões Hemingway confirmava a previsão que lhe fez Scott Fitgerald, de que iria precisar de uma mulher para cada livro.