Taipa | Abandonado desde 1975, Cineteatro continua com futuro incerto

O Cineteatro da Taipa passa quase despercebido. Um edifício abandonado há tanto tempo que já nem se dá por ele, ainda mostra o resto dos néons que lhe davam nome. Sem classificação e com futuro a ser ainda uma incógnita cabe a alguns desejar que volte a ser um palco da ilha. O proprietário vê a cor do dinheiro com finalidade comercial

teatro[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]aredes meias com o Largo de Camões e a Rua de S. João, impõem-se as ruínas do antigo Cineteatro da Taipa. Há muito que ali está ao abandono a servir de armazém para materiais de construção. Para os curiosos que passem na rua resta uma porta entreaberta que deixa vislumbrar um anfiteatro em ruínas povoado por bambus e restos de um pouco de tudo. Nota-se que um dia foi equipado para que dele se fizesse um espaço de lazer e cultura.

Reza a história documentada no livro “Cinemas de Macau” escrito por Wong Ha Pak e revelado pelo Instituto Cultural ao HM que o “Teatro da Taipa foi construído no dia 8 de Dezembro de 1965”. Da sala que estava equipada para uma lotação de 760 pessoas resta o registo do sucesso da projecção de “Happiness in the Hall”. A estrutura fecha, sem explicação em 1975. Diz a vizinhança que terá sido por falta de afluência. “Já não ia lá ninguém” refere João Isidro que se lembra do espaço enquanto miúdo, ao mesmo tempo que relembra os tempos anteriores em que, ali, se fazia fila à porta, “eram principalmente portugueses.” Mas depois tudo foi mudando e “há os casinos que têm destas coisas”.

Há vida na ilha

Se há 40 anos a população da ilha era reduzida, as estimativas actualizadas não mentem. Segundo os dados do Serviço de Estatísticas e Sensos de Macau, se em 2006 a Taipa acolhia cerca de 62 400 habitantes, em 2015 o número sobe em flecha para cerca de 103 mil.

Não só devido à explosão de casinos no Cotai como de prédios habitacionais, a Taipa é actualmente um local com vida e dinâmicas próprias e detentora de uma população que “não deveria ter que se deslocar a Macau para ter momentos de lazer e cultura.” Esta é a opinião de uma proprietária vizinha do Cineteatro quando questionada acerca deste espaço. A também residente da ilha que prefere não se identificar reconhece que “seria bom voltar a ter ali um teatro” e faria parte do conjunto de actividades capazes de enriquecer este lugar que “tem a sua própria personalidade”.

A reabilitação daquele espaço seria “muito boa” afirma, “não só para o negócio mas, e acima de tudo para a vila que já conta como local de eleição para visitas turísticas e que assim, tinham mais uma alternativa aos casinos”. Aponta para o negócio de bicicletas que anima o largo e refere um mercado muito visitado nas redondezas para ilustrar que a grande afluência àqueles lugares é porque “não há mais nada para além dos casinos e as pessoas sentem necessidade de outras coisas sem ter que se deslocar à península”. Fica revoltada quando se resume a “sua vila a hotéis e casinos” mas, ainda assim, admite que infra-estruturas como o que poderia resultar da renovação daquele teatro acabariam até por beneficiar os “grandes” pois dariam aos seus clientes mais locais de atracção.

O teatro em Macau não tem casa e Miguel Senna Fernandes, fundador do grupo de teatro Dóçi Papiáçam quando abordado pelo HM, não deixou de mostrar surpresa pela lembrança daquele espaço. Também para ele é um local esquecido, mas “importante”. O homem ligado aos Macaenses e ao Teatro “não sabe o que está previsto a nível de lazer e plano urbanístico para a Taipa” mas “obviamente que, do ponto de vista do cidadão é uma boa estrutura e uma coisa para ponderar para ver o que se poderá eventualmente fazer”. Hoje em dia na RAEM não existe a separação municipal que existiu noutros tempos. Miguel Senna Fernandes considera ainda que grande parte da população da Taipa ainda trabalha na península mas que já existe, efectivamente, muita gente a fazer a sua vida na ilha, pelo que se justifica que haja um tratamento a nível local quanto à necessidade deste tipo de infra-estruturas e é neste contexto “que podemos questionar quais as estruturas que dão de si à Taipa”, afirma.

“Porque não esta?” prossegue naquilo a que chamou de pensar alto, “está bem localizada e deveria pensar-se nalguma coisa para aquilo”.

Que sirva de alento

Enquanto pessoa também ligada aos palcos e ao teatro Miguel Senna Fernandes recorda ainda os tempos em que os grupos ainda existiam em Macau mas que têm vindo a diminuir porque “não há estrutura para os albergar”.

“É sempre muito complicado e mesmo frustrante, não conseguirmos nunca ter a ideia de como as peças em que trabalhamos vão resultar até à estreia” refere aludindo à falta de “casa” para que os grupos possam efectivamente criar as suas encenações. “Ensaiamos sempre noutros locais e nós temos tido a benesse da Escola Portuguesa que nos oferece o espaço para os ensaios, mas até ao dia de irmos ao Centro Cultural de Macau, onde são apresentadas as peças, não sabemos como vai ficar” sendo que trabalhar in loco é fundamental. Apesar da “preocupação por parte do IC” relativamente a esta situação, “ainda não é suficiente” e espera que o levantamento desta questão relativa ao teatro abandonado, “seja um novo alento para os novos grupos porque podia haver condições para a criação de companhias e há gente de qualidade”, deixando o apelo para “que venham os grupos porque o teatro é fantástico”.

Já o proprietário do edifício não partilha do mesmo fascínio. O HM falou com Tang Kuok Meng dirigente da Associação Geral do Sector Imobiliário de Macau que alude ao teatro como actividade “fora de moda”. O proprietário que também tem o nome no dossier “Panamá Papers” põe fora de questão a reabilitação para fins culturais. “O teatro actualmente já não está na moda” afirma, pelo que o terreno terá, não se sabe quando “uma função comercial”. Para Tang Kuok Meng o fecho do teatro devido à falta de público, apesar de remontar há cerca de 40 anos, continua a ser uma questão actual. Indiferente às mudanças do quotidiano e da população, continua a achar que o teatro não é rentável e um “espaço comercial” será o destino da estrutura, sem que sejam adiantados pormenores.

“Mono de ratos”

É naquela zona da Taipa Velha que Santos Pinto tem um restaurante e habita há mais de 25 anos. Não se recorda do funcionamento da estrutura mas lembra-se de ver ali desde sempre “aquele mono, ninho de ratos”. Pensar na reabilitação do cineteatro é coisa que “já devia ter sido feita há muito” e mesmo prioritariamente à construção dos casinos”. Sem eira nem beira , é um edifício que não está ali a fazer nada a não ser a “servir de casa para os ratos que depois afectam os vizinhos também”. Para além da saúde pública está também a segurança. Santos refere ainda um outro espaço mais recente também dotado ao abandono e refere que um dia “vem um tufão e leva os vidros deste edifícios, sem segurança nenhuma”. O proprietário do restaurante de comida portuguesa não tem duvidas quanto ao bom aproveitamento caso lhe seja devolvido o destino inicial. Não entende como é que está ali há tanto tempo naquele estado visto que “assim não dá lucro a ninguém a não ser que seja para valorizar o terreno” e “aquilo deveria ser aproveitado e ser do beneficio das pessoas que têm vivido à sombra daquele monstro”. “As pessoas que ali têm vivido deveriam ter alguma mais valia e o espaço deveria ser aproveitado em prol dos residentes que coitados só assistem a este crescimento desmedido com grandes construções que não são pensadas para a população”.

Ficheiro (não) classificado

O edifício do cineteatro da Taipa é ainda referido na compilação de opiniões públicas recolhidas acerca dos dez imóveis propostos a classificação pelo IC. A análise já noticiada pelo HM há cerca de uma semana não deixa passar este espaço. Para João Palla Martins o edifício na Rua de S. João está nas sugestões “urgentes” para abertura de um processo de classificação. O Cineteatro junta-se a outras estruturas que segundo o arquitecto citado no HM “fazem parte da história de Macau” ou “estão em risco sério de desaparecimento”.

A ideia de classificar e dar nova vida ao espaço não é nova. “Houve ideias bastante claras ao longo destes anos para que esse edifício fosse reabilitado para fins culturais”, relembra Carlos Marreiros ao HM. Na opinião do arquitecto haverá uma opinião local que quer apostar na indústria cinematográfica” por um lado, e por outro , para além da Cinemateca Paixão, não há muitos espaços no território, pelo que “este seria um local a considerar”.

O edifício em si, não sendo um edifício de traça arquitectónica local, “traz claramente memórias colectivas associadas àquele local” pelo que “qualquer ideia de recuperação será bem vinda pela população”.

Questionado acerca do abandono do mesmo o IC “não sabe o motivo do seu encerramento”. “Não é um bem imóvel classificado”, afirmam e como tal cabe aos proprietários a responsabilidade pelo seu zelo. O IC não tem este edifício na lista de edifícios passíveis de vir a ser classificados, no entanto adianta ainda que para “determinar o seu valor cultural segundo a Lei de Salvaguarda do Património Cultural, será necessário recolher informações e proceder a um estudo”.

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