h | Artes, Letras e IdeiasO futuro não tem temporada Paulo José Miranda - 9 Ago 2016 [dropcap style=’circle’]J[/dropcap]á em Homero, na Ilíada, encontramos o aviso acerca da possibilidade de se perder a vida, e pôr outras a perder, por causa das paixões que nos assolam e às quais não resistimos. Foi assim com a guerra de Tróia, como o foi ao longo de tantas e tantas existências ao longo dos séculos, mais ou menos relevantes para a humanidade, ecoando ou perdendo-se no silêncio de uma vida, como recentemente – tendo a história da poesia como medida – no exemplar De Profundis, de Oscar Wilde. Entregar-se à paixão que se abate sobre si mesmo, ao invés de lhe resistir, de lhe dar luta, pode levar-nos à responsabilidade da guerra de Tróia ou à da perda da nossa própria vida, ou parte dela. E é precisamente nesta tradição, que podemos situar a poesia de Pedro Gonzaga, poeta nascido em 1975, em Porto Alegre, capital do estado do Rio Grande do Sul, cidade onde ainda vive. Pedro Gonzaga tem dois livros de poesia editados, ambos pela ArdoTempo, Última Temporada (2011) e Falso Começo (2013). Iremos percorrer a poesia dele, aqui, através do seu primeiro livro, Última Temporada. Se lermos com alguma atenção o título deste livro de poesia de Pedro Gonzaga, entendemos de imediato do que se trata: de um livro que faz apresentações de modalidades em torno da expressão “última temporada” e do que isto possa significar numa alma humana. Por conseguinte, não iremos fazer outra coisa senão falar do título do mesmo, nas suas diversas modalidades de apresentação. A expressão “a última temporada”, assim sem referente determinativo, como no título do livro, é uma expressão com dois sentidos quase opostos, mas que aqui se amalgamam de modo a nos mostrar de um modo privilegiado a vida e a linguagem que expressa essa vida. Passemos então a ver o que está em causa no título do livro. Quando alguém diz “a última temporada” de uma peça de teatro ou a “última temporada” de uma série televisiva, está a dizer que, depois de várias outras temporadas anteriores, depois de vários meses ou vários anos, esta aqui e agora onde estamos é a última. Quer isso dizer que depois desta já não vai haver mais nenhuma. Esta é a última, a derradeira temporada, acabou-se. A derradeira temporada pode muito bem ser a vida de cada um de nós, aquela vida que somos aqui e agora, a que nos carrega ou que com ela carregamos. Assim, A Última Temporada, de Pedro Gonzaga, numa primeira instância remete-nos logo para a vida de cada um de nós, aqui e agora. Mas como “última temporada”, neste sentido, tem necessariamente de ter um antes do agora, isto é, é preciso existir uma ou mais temporadas anteriores para que se afirme “última temporada”, a última temporada aqui não pode ser a vida, pois as pessoas não tem vidas anteriores. Por conseguinte, esta última temporada é a última temporada da vida, aquela a que se atribui, ou alguém atribuiu, ser a parte final da vida de alguém. A vida humana é assim dividida em temporadas pelo título do livro. Aqui não podemos deixar de lembrar o poeta francês Rimbaud e o seu livro Une Saison en Enfer, Uma Temporada No Inferno. Mas aqui trata-se da última parte da vida humana, e não de um interlúdio amoroso mal sucedido. E o escândalo deste título assume aqui a sua extensão máxima, se tivermos em atenção a idade do poeta, trinta e poucos anos, e tratar-se do seu primeiro livro de poesia. Sabemos isso pelos poemas “herança”, onde se pode ler à página 15: “(…) aos 35 anos / com meus dentes perfeitos (…)”; e pelo poema “para além dos bancos de areia prateada”, onde, na página 36, se lê de um modo algo jocoso, nos últimos dois versos: “señor, não se chega impunemente / ao trigésimo quinto inverno”. Por conseguinte, não podemos deixar passar isto em claro, tomar a coisa por irrelevante. Ora, se um poeta regista em um poema a sua idade, 35 anos, e ao mesmo tempo põe o título ao livro de A Última Temporada, é porque, evidentemente, quer que fique claro que a partir de agora é o início do fim. Para trás ficou tudo o resto, todas as outras temporadas, e se boas ou más não importam aqui e agora. Não se pense também precipitadamente que se trata de um livro de despedida, pois o mesmo poeta remata o poema “descobertas”, à página 52, da seguinte maneira: “(…) serei um homem-bomba / até aos noventa anos”. O poeta entende que a última temporada da vida humana é a mais longa ou, pelo menos, pode vir a ser muito mais longa. Longa, aqui, quer dizer infindável. E, ao mesmo tempo, um infinito de perdas. Leia-se em “imperativo”, página 43: se puderes fechar os olhos para o real fecha agora não te preocupes, antes, aproveita hão-de acordar-te os credores a dor no ciático o fingimento da mulher que nunca se entrega Por outro lado, e também como pudemos ler no excerto anterior, não se trata de uma poética do queixume ou de qualquer denúncia situacional ou de adversidade. Não, aqui a denúncia é a da condição humana (e não a de um humano em particular). E a responsabilidade do que se faz com essa condição humana, desconhecendo-a ou dissecando-a, é nossa. No fundo, aquilo que neste primeiro sentido se pode apurar para o título, A Última Temporada, é o seguinte: a partir de agora é que é a sério, a partir de agora é que se vai ver o que a vida é, pois até aqui foi a brincar. A partir de agora a vida é a doer, como se usa dizer, nos embates desportivos. Um segundo sentido que a expressão e o título A Última Temporada parece ter, escrita assim sem qualquer referente definido, é a de “a última temporada” de verão. Por outro lado, a última temporada de verão pode ter ainda dois sentidos distintos, a saber, que essa última, a outra anterior a esta em que estamos, é que foi boa, ou que a última, a anterior foi muito má e esperamos que esta agora seja muito melhor. Julgo que podemos excluir de imediato a segunda subdivisão, pois a análise que se fez em relação à primeira modalidade do sentido da expressão de “última temporada” assim mesmo o obriga. Parece ter ficado claro anteriormente que a “última temporada” a que o poeta se refere não é melhor do que as anteriores. Como ele mesmo termina o penúltimo poema deste livro “versos de agora, versos de antes”: versos de agora, versos de antes vocês sabem que fomos o que duas criaturas humanas juntas não poderão nunca superar Dito de outro modo: fomos o insuperável. Fomos! E fica, já quase no fim do livro este eco interminável em nossos corações: fomos, fomos, fomos, fomos, fomos… Comecemos então pela análise do sentido desta segunda modalidade do entendimento que se faz da expressão que dá título ao livro e que, como iremos ver, ao invés de ser contraditória em relação à primeira será antes complementar. Comecemos por pensar que essa outra temporada, a anterior, cheia de sol e de alegria, não é esta aqui e agora, cheia de chuva e de tristeza. E bem podemos dizer isso, pois leia-se os seguintes versos do poema “estrada”, à página 19: mais uma vez a armadilha mais uma vez o desejo nenhuma certeza subsiste nunca fica mais fácil nada se aprende da estrada percorrida Para além de que nunca ficar mais fácil, reparemos ainda numa questão técnica, como se fosse suplementar, como se a poesia não fosse toda ela a vida exposta com técnica e alguma ternura: Pedro Gonzaga divide os seus poemas em pontuados e não pontuados. Há nos primeiros uma sensação de náusea a que o leitor mais atento não escapa, como se cada vírgula fosse uma curva na estrada, nos levando a contragosto montanha acima. Confira-se isto, por exemplo, no magistral poema inaugural do livro. O poema fala do amor, fala da possibilidade do amor nos acontecer, mas ele é escrito com tantas curvas, com tantas vírgulas, que quando ele termina com os seguintes versos quando alguém me diz Ah, o amor é fácil mal contenho a vontade de cuspir-lhe na cara é um alívio a viagem terminar. Mais: se ele não cuspisse, nós mesmos provavelmente vomitávamos, depois de tanta curva, de tanta e tanta vírgula num poema. Por conseguinte, depois de tanta dificuldade ainda ir escutar alguém dizer que o amor é fácil, ninguém merece, como diz a voz de Deus, a voz popular. É, sem dúvida, um dos exemplos da superioridade poética de Pedro Gonzaga, da mestria com que usa a técnica única com que podia ditar este poema. Mas, no outro poema que falávamos atrás, cujo título se chama precisamente “estrada”, ele retira todas as vírgulas, retira todas as curvas, fazendo deste poema uma estrada a direito, como se a vida fosse isso mesmo, sempre a direito, como se a vida fosse ir de Porto Alegre até à Argentina. Sempre a direito. Ou seja, nossa vida vai daqui ali num instante, ela vai daqui, onde estamos agora, a um imenso e eterno nada, com o desejo pelo meio. O nada aqui, obviamente não é a morte, é não se aprender nada. Iremos sempre daqui para a Argentina para nada, para não se aprender nada. Está bem de ver, então, que esta “última temporada” a que me refiro agora, é a temporada passada, é o passado, é aquilo que já foi um dia, que aconteceu e já não é e já não volta. A primeira modalidade de expressão de “a última temporada” tem os dois pés bem vincados no presente, ao passo que a segunda modalidade de expressão de “a última temporada”, tem a cabeça lá trás, no passado. A primeira é aqui e agora sem referências ao passado, a não ser enquanto lógica linguístico-temporal: se esta é a última é porque teve outra ou outras antes desta. Estas duas “últimas temporadas”, uma que nos mostra a consciência do fim eminente e, a outra, que nos mostra uma anterioridade melhor do que o presente, o aqui e agora, é aquilo de que trata, e muito bem, este livro. Estamos literalmente entre a espada e a parede. A parede é o passado atrás de nós que não nos deixa fugir para o tempo bom, recuar até ele, e a espada é aquilo que aqui e agora nos ameaça, o presente prenhe de um futuro laminoso (e me perdoem o neologismo). De outro modo, e me fazendo de sujeito do livro, passo a dizer: eu entendi que é aqui e agora, aqui onde estou, a última temporada, esta é a minha vida e já nada mais me resta até ao fim senão ir sofrendo cada vez mais, declinando lentamente e estar exposto a todas e mais algumas intempéries usando a técnica e a ternura; por outro lado, ficamos também conscientes de que a temporada passada, a da adolescência, a da juventude é que foi boa e não esta aqui e agora, que se mostra como sendo a última, a última dança. Podemos ler à página 30, nos versos finais do poema “procela”, o seguinte: finis terrae a praia prometida o barulho das folhas ilusório verão Ilusório verão E é como acaba o poema: ilusório verão. Precisa de explicações, ilusório verão? E “procela”, que diz tempestade no mar, precisa de explicações? Mar esse que não é só a vida, é também aqui a vida de um poeta. Aliás, no poema podemos ler estes belos versos, preciosos, testemunhais: há um mar em Camões há um mar em Pessoa Mas querem ver o gume mais afiado da espada que aponta o peito do poeta, esse presente prenhe de futuro de que falámos atrás? Escutemos então, e vejamos como a vida humana só pode ser pior a cada dia que passa, pelo extenso verso com que termina “o baile”: eu sou o medo do dia em que haverei de abraçar o corpo frio de meu pai Há, contudo, vários outros medos que o poeta afirma ser, antes desse medo último, derradeiro. Medo que é também o meu. Medo que causa um arrepio pela existência acima! Mas passemos então agora, e sem demoras, ao centro do vulcão deste livro, aos poema “a primeira rebentação”, e aos seus oito versos finais, e ao poema “em algum lugar”. Comecemos pelo primeiro destes poemas: éramos invisíveis e o que não entendo, minha adorada, enquanto seguem a quebrar as ondas sonoras na praia deserta do presente é quem foram aquelas criaturas que ressurgiram das águas Sim, quem foram aqueles que fomos? Quem éramos nós, que já não estamos aqui? Como é possível haver outros agora ali fazendo de nós? Onde é que fomos parar, que não nos reconhecemos senão naqueles que não somos? Mas o abismo inultrapassável destas modalidades de últimas temporadas, assume a sua expressão mais pungente no poema dedicado a Sérgio Fischer, denominado “em algum lugar”, e que nos leva a um hospital de uma qualquer parte do mundo e à temporada derradeira de alguém (presumivelmente o amigo a quem o poema é dedicado). Leia-se uma vez mais os oito versos finais de um poema, desta feita os versos finais de “em algum lugar”: lá dentro atrás da porta verde está o amigo que um dia amamos, lá está o patrimônio de tantos almoços e cafés na juventude lá estará o tempo de um telefone mudo à cabeceira Repare-se na fantástica transformação do espaço em tempo através do advérbio de lugar “lá”. Começa por dizer o poeta, com uma locução adverbial de lugar, “lá dentro”; lá dentro onde a morte já se instalou e o amigo passa a ser “antes”, através do verso “está o amigo que um dia amámos”. “Um dia”, aqui, é o mesmo que antes, que é o mesmo que nada, pois aquilo que começa por parecer nos colocar num lugar, “lá”, passa a “um dia” e “um dia” passa a nada, através dos penúltimo e último verso “lá estará o tempo” e “um telefone mudo à cabeceira”. O tempo, visto como um telefone mudo à cabeceira, é o perto mais longe do mundo. E ficámos a saber que um telefone que não toca é o tempo mudo. O tempo mudo é o inferno. Assim, e de modo magistral, a vida humana passa de espaço a tempo, de um lugar preciso para um tempo passado e de um tempo passado a nada, esse substantivo aterrador por excelência. Não podemos deixar de focar a precisão impressionante da forma verbal onde o tempo vai aparecer e transformar o dia em nada: “estará”! No futuro está o nada. No futuro está aquilo que já não somos, onde poeta e amigo são uma e a mesma coisa: lá dentro, um dia, estará o tempo; todos nós vendo a morte de alguém e sendo vistos pelas lágrimas de outrem. O futuro não tem temporada.