Minimalismo e realismo

Carver, Raymond, A Catedral, Teorema, Lisboa 1987
Descritores: Literatura norteamericana, Contos, Stories without story, minimalismo, Tradução de Carlos Santos, 191, [5] p.:21 cm
Cota: C-10-5-222

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]aymond Carver nasceu no dia 25 de Maio de 1938 em Clatskanie no estado de Oregon e faleceu a 2 de Agosto de 1988 em Port Angeles, Washington DC. Cresceu em Yakima, Washington. Carver estudou por um tempo com o escritor e teórico John Gardner na Chico State College em Chico, Califórnia. Publicou um grande número de contos em diversos periódicos, incluindo The New Yorker e Esquire, contos que mais tarde foram reunidos em livros. As suas histórias têm sido incluídas nas mais importantes colecções norte-americanas, como Best American Short Stories and O. Henry Prize Stories. A escrita de Carver é normalmente associada ao minimalismo e ao chamado realismo sujo (Dirty Realism). O seu editor na Esquire, Gordon Lish, foi fundamental no processo da escrita minimalista de Carver. Por exemplo, quando Gardner aconselhava Carver a usar 15 palavras ao invés de 25, Lish aconselhava Carver a usar 5 no lugar de 15. Durante este tempo, Carver também submeteu suas poesias a James Dickey, então editor de poesia da Esquire.

Minimalismo e realismo

Da obra de Carver destaco os contos que em Portugal apareceram em colecções com títulos muito originais: Queres Fazer o Favor de te Calares, De Que Falamos Quando Falamos de Amor, além da Catedral, e de Três Rosas Amarelas, título de um dos contos desta colecção, provavelmente o melhor conto de Carver e que glosa os últimos dias de vida de Anton Tchekov, na cama de um hospital em Badenweiler, na Floresta Negra. A sua mulher, Olga narrou assim os momentos finais: “Anton sentou-se extraordinariamente erecto e disse em voz alta e clara (embora ele não soubesse quase nada de alemão): Ich sterbe (“Estou morrendo”). O médico acalmou-o, pegou uma seringa, deu-lhe uma injecção de cânfora e pediu champanhe. Anton tomou um copo cheio, examinou-o, sorriu para mim e disse: ‘Fazia um bom tempo que não bebia um copo de champanhe. “Ele bebeu, e inclinou-se suavemente para a esquerda, e eu só tive tempo de correr em sua direcção e de colocá-lo na cama e chamá-lo, mas ele tinha parado de respirar e estava dormindo tranquilamente como uma criança”. Mas o final, quer dizer as últimas dez páginas de Três Rosas Amarelas, é simplesmente sublime.
Mas não é desse livro, nem desse conto que se trata agora. Agora é de um realismo mais sujo e de contos mais minimalistas e mais americanos. Três Rosas Amarelas, provavelmente por causa do tema é uma digressão pelo realismo à maneira de Tchekhov, existencial mas limpo, minimalista o quanto baste, irónico, subtil, contudo intensamente lírico, como só o génio russo pôde dar. Os contos da Catedral são até literariamente mais difíceis de lograr, porque lhes falta o tema, nem me estou sequer a referir à elevação do tema. Não! Apenas ao tema tout court, quer dizer, um assunto simplesmente. Os contos da Catedral são sobre nada e coisa nenhuma, são sobre o vazio existencial, sendo eles mesmo vazios. Então como é que produzem um efeito não só literário como emotivo. Onde nos tocam, por onde nos tocam e como nos tocam os contos de Carver? Era sobre isso que eu gostaria de tentar dizer qualquer coisa. Não tenho sequer a ilusão de chegar a um porto desta vez, o deserto é imenso e é preciso atravessá-lo em condições difíceis. 7716P14T1
Ezra Pound disse algures, eu sigo umas notas avulsas que andam por aqui no meio dos meus livros, disse, dizia, que: “a precisão sem concessões é a única moralidade da escrita”. Ora nisso estaria Raymond Carver de acordo e o seu editor ainda mais, por maioria de razão. Quando portanto, e volto a repetir, Gardner disse a Carver, a propósito da análise de um parágrafo concreto de um manuscrito qualquer, que usasse 15 palavras em vez de 25 e o editor o aconselhou a usar apenas 5, estariam ambos a empurrar a obra de Raymond Carver para o domínio estético circunscrito pelo aforismo poundiano. Parece-me que ficamos assim conversados acerca desse ponto, do minimalismo e do rigor. Mais do que rigor é de puro ascetismo e disciplina que se trata.
A mim o que me cativa em Carver é assim o que fica por dizer, os buracos na narrativa, muitas vezes explícitos e essa pobreza quase ostentatória que tanto me comove. Há por outro lado brechas, rasgões por onde entra o frio e isso além do mais incomoda e pode fazer sofrer, talvez a meias com um desconforto tímido, porém as brechas no discurso acordam-nos e estimulam uma resistência ao cansaço e uma vontade de participação. Estou a ser lacónico, pois o que me cativa em Carver é afinal tudo e por isso ele ocupa um lugar nuclear na minha relação com a literatura contemporânea. Há uma época da minha vida, cujos contornos existenciais se adequavam às características destas short stories without story, na medida em que também a minha experiência vital ia no sentido de uma deriva com episódios inconclusivos. Quando por acaso os acasos me colocavam na senda de uma narratividade mais consistente e mais densa eu próprio me encarregava de a sincopar ou de a esvaziar até. Foi o tempo em que para além de Raymond Carver eu lia David Leavitt e Bret Easton Ellis e saía de salas de cinema a meio para voltar e acabar de ver os filmes dias mais tarde. A desestruturação da realidade, a sua desconstrução em partes, conferia ao meu modo de vida um sentimento que eu pensava na época que era mais intensamente poético. Mas de tudo o que ficou de uma forma mais perene foi afinal a leitura de Raymond Carver, e através dos seus textos, a cristalização de uma ideia de radical incomunicabilidade dos sentimentos, em particular e por maioria de razão, do sentimento de solidão.
Em Raymond Carver, nunca há foguetório e muito menos suspense e clímax final. O texto vai-se deixando ler por desfastio, porém deixar de ler nem pensar, como se o ‘nada acontecer’ fosse uma droga. Como, não sei. E já terei dito quase tudo o que sou capaz. Carver vai entrando e vai forçando uma conversa interior, um monólogo; as suas propostas são muito abertas e precisam de nós para adquirir, ganhar sentido, quando damos conta estamos atolados até ao pescoço. O conto, a Catedral, que dá nome ao conjunto é muito emblemático pois o personagem principal é cego e sendo amigo da mulher de Carver vai a sua casa para conversar. Carver não está nada à vontade a falar com um cego. Durante algum tempo os três, o anfitrião, a mulher e a visita, interagem, comendo, bebendo, fumando e conversando, depois a mulher adormece no sofá e ficam apenas os dois homens disponíveis para continuar a conversar, o anfitrião e a sua estranha visita. Nesta altura a interação torna-se mais complicada sobretudo quando a propósito de um programa de televisão em que se fala de catedrais, o cego interpela o anfitrião no sentido de que ele lhe fale de como são as catedrais, … É aí que a incomunicabilidade tão cara às personagens de Raymond Carver explode, mostrando neste caso que aquele que vê não é menos cego que o cego. É aliás o cego que, a dada altura, lhe guia a mão, para que ambos desenhem uma catedral de olhos fechados, digamos assim. De facto, o anfitrião fecha os olhos para conseguir adquirir a sensação de não estar dentro de nada, o que é muito expressivo, uma vez que é isso o que as personagens de Carver parecem exprimir habitualmente, que estão sempre à beira de naufragar, embora dentro de nada, ou seja, à beira de naufragar dentro do vazio, de um fluido que não existe e contudo, ao mesmo tempo, rodeadas de um excesso de tudo, de ruídos, de destroços, de objectos, de sentimentos excessivos, de frases sincopadas, de pedaços de comunicação apócrifa, metrópoles de adereços descontextualizados, de puros detritos sem sentido.

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