Animais e outros que tais

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]í está a famigerada lei da protecção dos animais, finalmente aprovada após um bom par de anos de discussões, hesitações e reprovações. O diploma passou na Assembleia Legislativa com os votos a favor de quase todos os deputados, com excepção de dois que votaram contra e uma abstenção, havendo ainda um deputado que esteve ausente deste momento verg…verdadeiramente histórico. O deputado ausente foi Ma Chi Seng, e os dois votos contra foram de Pereira Coutinho e o seu colega de bancada Leong Veng Chai, com o primeiro a justificar-se com as “deficiências na redacção da versão em português da lei”. Quero acreditar que sim, que terá sido esse o motivo porque o deputado votou contra, e que não o fez por mero despeito – recorde-se que Coutinho havia apresentado propostas de lei idênticas a esta, que foram no entanto reprovadas pelos seus colegas de hemiciclo que tanto o estimam. Fosse o sarcasmo um mamífero senciente, e estava agora metido num grande sarilho, por dele ter “abusado”.
Esta ideia da redacção deficitária da lei foi corroborada por Leonel Alves, que se absteve pela mesma razão que Coutinho votou contra, o que levou a sra. Secretária para a Administração e Justiça a prometer uma revisão atempada da versão portuguesa do diploma. Infelizmente sou induzido a pensar que a lei podia até ter sido elaborada por uma criança semi-alfabetizada, e passaria na mesma, uma vez que foi o Governo a apresentá-la. Em teoria o órgão legislativo tem entre outros o dever de fiscalizar o órgão executivo, mas em Macau a teoria fica por isso mesmo, e na prática o que se passa é…”um caso exemplar de coordenação” entre os dois poderes. Vá lá, se não for com um bocadinho de humor a empurrar, fica muito mais difícil de digerir.
Confesso que para falar deste tema fui rever o artigo que escrevi nas páginas deste mesmo jornal a 20 de Fevereiro de 2014, aquando de uma das “negas” à proposta de Pereira Coutinho, e nem de propósito verifiquei que na conclusão deixei expressa essa mesma ideia: de que uma eventual lei deste tipo dependeria da iniciativa do Executivo. No entanto há a reter as intervenções de alguns deputados, que mais uma vez deram a entender que a sua “praia” é outra. Podiam abster-se de proferir certas afirmações que em nada os dignificam, mas alguns até se parecem divertir com aquilo que consideram “inútil” – afinal os cães e gatos não votam.
E é sobretudo de cães e gatos que se trata esta lei, se deixarmos de fora os preciosismos. O nº 1 do artº 8º, por exemplo, determina que a utilização de animais em circos, exposições e espectáculos ao público (sic) carece de autorização prévia do IACM, com excepção dos peixes. Podem ficar descansados os domadores de bacalhau e restantes carapaus de corrida. Li as partes que interessavam do diploma – até às disposições finais e transitórias, portanto – e não me pareceu tão mal elaborado assim. Quer dizer, pareceu-me “normal”, sabendo o que a casa gasta. No entanto aprendi uma palavra nova: “occisão”. Por instantes fiquei a interrogar-me o que tinham os habitantes do sul de França (os occitanos) a ver com os bicharocos desta jurisdição tão distantes, mas depois vim saber que esta é a versão animalesca de “assassinato”, e mais aliviado fiquei quando o próprio dicionário me garantiu que se tratava de uma palavra “pouco usada”.
Mas é disto que a lei se trata no essencial: criminalizar o abandono e os maus tratos aos animais, com multas até 100 mil patacas e penas de prisão até dois anos, respectivamente. Se no primeiro caso fica tudo claro como a água, pois no caso dos cães existe um “chip” implantado no animal que identifica o dono, no segundo caso muda tudo de figura. Primeiro é preciso entender que esta lei não foi feita para os cães e gatos. Por muito que certas pessoas insistam em atribuir aos bichos sentimentos como a nostalgia ou qualidades como o ouvido musical, não convencem ninguém de que estes seres irracionais conseguem assimilar o conceito de “lei”, e de que esta em particular foi feita para eles, e de que se podem socorrer da mesma caso seja necessário. Isto tudo para dizer que o crime de maus tratos a animais não depende tanto de queixa, mas mais de denúncia.
É aqui que entra a questão da sensibilidade de cada um para este tipo de coisas, pois há quem relativize um pontapé numa galinha, e há também quem queira boicotar a Irlanda por causa das corridas de galgos (para bom entendedor…). Não conheço ninguém que maltrate animais por prazer, mas talvez seja por culpa própria, pois não frequento os mesmos locais que os sádicos e os psicopatas que se excitam com o sofrimento de outros seres vivos. Posto isto, não é despiciendo ponderar a hipótese da tal “denúncia” ser feita em moldes que podem variar conforme quem denuncia. Há quem veja um indivíduo tropeçar num cachorro por acidente no momento em que o bicho se atravesse à sua frente quando ia a sair de casa, e há quem veja um biltre que esperava que o pobre animal passasse pela sua porta para lhe saltar em cima e espezinhá-lo. Louvada seja a lei, que protege os animais irracionais da eventual sacanice de outros que às vezes se esquecem que são racionais. Mas quem protege os verdadeiramente racionais da ira dos que teimam em comportar-se como irracionais?

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