h | Artes, Letras e IdeiasA propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt, 1927, Walter Ruttmann Boi Luxo - 28 Jun 2016 Crise, Assassinato, Bolsa, Casamento, Dinheiro, Dinheiro, Dinheiro . . . [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s capítulos que Georges Sadoul dedica, no seu livro Histoire du Cinéma Mondial, ao cinema mudo, lembram como esta arte se implantou com uma velocidade prodigiosa um pouco por todo o mundo assim que se ultrapassaram alguns problemas técnicos. De algum modo, que não consigo definir, penso que o cinema mudo ganhou, nos dias de hoje, uma nova actualidade. A facilidade com que na era da tecnologia digital se produzem imagens reproduz uma inocência próxima à que envolve o cinema mudo. O à-vontade no tratamento e na recepção da imagem vem igualmente integrar de uma maneira mais natural a produção antiga de imagens no mundo de hoje. O seu aspecto e a sua gramática parecem fazer mais sentido hoje do que em alturas da história do cinema em que a maioria da sua produção seguia modelos demasiado comerciais e, sobretudo, demasiado semelhantes na sua sintaxe e nos seus desígnios. O digital veio igualmente libertar um pouco a produção da imagem (cinematográfica também) de uma obrigação lucrativa. Tendo-se, afortunadamente, desenvolvido no início do século XX, o cinema pôde aproveitar outras energias que lhe eram exteriores e que à altura mostravam grande fulgor. O cinema, a pintura, a escultura, a fotografia, a música e o bailado andaram, nessa época de grande excitação estética, muito mais ligados do que andam hoje*. Assim, paralelamente ao cinema narrativo, permaneceu durante vários anos uma linha mais ligada àquilo que podemos chamar a avant-garde e o cinéma pur. A diferença para hoje é que o cinema avant-garde dos anos 10, 20 e 30 parece natural e perfeitamente integrado na estética da época. Seria fastidioso estar a listar nomes mas será útil lembrar que este cinema tem origem em vários países, Alemanha, França, Itália, Rússia (e U.R.S.S.), E.U.A. ou Japão, para lá de exemplos mais isolados em outros países.** Há, nos anos 20, uma força dentro do cinema no sentido de o libertar do jugo da literatura e do teatro criando, ao invés, uma linguagem absoluta internacional para si próprio, um programa que se publicita abertamente num filme de que aqui se falará: Man with a Movie Camera, 1929, de Dziga Vertov – um filme sem guião, actores ou cenários, como no início se afirma inequivocamente. Walter Ruttmann juntou uma série de pontos programáticos semelhantes para a apresentação do seu filme de Berlim. Mas, como todos hoje sabemos, o cinema comum, ao tornar-se uma actividade para as massas, não se libertou nunca da literatura. Mas tudo isto vem a propósito de Berlin – Die Sinfonie der Großstadt/Berlin – Symphonie of a Big City, 1927, de Walter Ruttmann, um elogio futurista (uma Ode) a Berlim e à ideia da grande cidade, assunto dilecto das elites vanguardistas da época. Um amante desta mais extraordinária das criações humanas, a grande cidade, não pode deixar de integrar este filme no seu complexo admirativo. Lembre-se e releia-se a – muito mais agressiva, muito mais diversificada nas imagens e muito mais sexual – Ode Triunfal de Pessoa/Álvaro de Campos, anterior cerca de 15 anos. Por vezes o filme alemão parece ser uma ilustração do poema de Pessoa. O documentário foi desde cedo apontado como um dos géneros (para lá do Cinema Absoluto ou Puro) próprios à modernidade do cinema. Die Sinfonie…, estreado no mesmo ano de Metropolis, é um documentário, fácil de seguir se pensarmos que Ruttmann, que era inicialmente pintor e gráfico, se dedicara anteriormente ao filme abstracto (ver os seus pequenos Lichtspiel). Ao longo dos seus 5 andamentos, é-nos mostrado um dia na vida da grande metrópole sob a perspectiva do elogio da modernidade e das possibilidades promovidas pelas novas tecnologias (filmado ao longo de 1 ano e montado para fingir 1 dia). Exibe-se o gosto pelo movimento e pela velocidade. Neste conjunto de afirmações os transportes públicos (como acontece insistentemente na Ode… de Pessoa) têm um lugar de destaque – como meio de transporte das massas e como elogio à beleza da máquina e da velocidade – comboios (imensos, locais, nacionais e internacionais) táxis, autocarros, aviões (já a Lufthansa) eléctricos (como ainda hoje), metropolitano, alguns carros particulares. É uma imagética que encontramos em outros filmes da época com programa semelhante. O espectáculo do movimento, objecto do cinema abstracto e do cinema de animação, não é aqui muito diferente. Continua-se com a fábrica, a máquina e a sedução económica mas também estética das possibilidades ilimitadas da montagem em série, a reprodução infindável do produto que permite uma abundância que se acreditava vir a ser generalizada. No Acto II, a actividade frenética das primeiras horas da vida da cidade, a foule, as massas, a abertura dos estabelecimentos, etc. …hé-lá-hô la foule! Berlim, como sabemos, é uma cidade de muitas faces. A guerra e a divisão em duas partes obrigou-a a permanecer num estado peculiar. Não transmite hoje – mesmo que seja uma cidade vibrante e bela a muitos níveis – o vigor do tipo de cidades que este filme, Metropolis, ou até o conhecido filme de Vertov, Man with a Movie Camera, prometiam. Isso vê-se hoje em Tóquio, Hong Kong ou Nova Iorque. Man with a Movie Camera segue uma ideia muito parecida, mostrando o acordar da cidade e a sua agitação dando especial atenção à montagem e ao ritmo. No entanto, no filme soviético (filmado ao longo de 3 anos e montado para parecer 1 dia), são várias as cidades que se mostram, permanecendo o sentido de exaltação da vida urbana em geral. São muitos os tipos sociais mostrados no filme alemão. Há muitos pobres e uma afirmação sólida de que a cidade é insaciável no seu desejo de juntar riqueza e que não se deterá em tentar os seus objectivos seja por que meios for. A parte que corresponde ao período da tarde (depois de uma hora de almoço despreocupada e quase lânguida) é de uma velocidade frenética, favorecida pelas técnicas de montagem em moda na altura, para, mais para o fim, abrandar de novo ao mostrar o lazer do fim de tarde (o desporto, especialmente as corridas)***. Peço de novo ao leitor que leia a ode de Pessoa/Campos em conjunto com esta sinfonia. Os pontos de contacto são, na verdade, inúmeros. O último acto, o V, é dedicado ao lazer nocturno. Não vale a pena estar a adiantar uma descrição. Recorde-se apenas que este é um filme que mostra a cidade como ela é e não uma visão de uma cidade do futuro (como Metropolis). Antes a exibição de um orgulho e uma satisfação pela pertença a uma modernidade que Berlim demonstrava. Por muito que se mostre como um filme de exaltação das energias da grande cidade (que Berlim nesta altura era) este prende-se muito com as pessoas que a povoam, descendo ao nível da rua e tornando-se muito físico e bondoso, ao contrário do que acontece, por exemplo, com Manhatta, 1921, de Paul Strand e Charles Sheeler, um dos mais antigos filmes sobre uma cidade. Nem todos concordam com esta afirmação. Existe um filme de 2002, de Thomas Schadt, chamado Berlin. Sinfonie einer Grosstadt. Como o próprio nome indica é uma versão moderna do filme de Ruttmann. Deve ver-se. É inquietante, vagamente disfórico – o futuro do Futurismo já passou. Enquanto a demonstração da montagem em série, no filme de 1927, parece moderna, no de 2002 é sinistra, como se tudo – até os produtos de pastelaria – não passasse de uma conspiração. Cria uma desconfiança em relação à Bola de Berlim. Foi filmado antes de Berlim se tornar numa cidade da moda, artística, gira e turística, durante os anos um pouco cinzentos de Gerhard Schröder. Também se passa durante um dia, o que faz lembrar um outro filme muito recente (não documentário) de que já aqui se falou, Victoria, de Sebastian Schipper, cuja acção se passa em Berlim durante uma noite (filmado em apenas um take de 138 minutos). (Finalmente. Lembre-se a existência um filme brasileiro não há muito tempo referido nesta página mas que eu nunca vi: São Paulo, A Sinfonia da Metrópole, 1929, de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, fortemente inspirado no de Ruttmann). * com excepção do período do mudo, o cinema nunca andou muito próximo da dança. Hoje em dia, tirando uns exemplos alemães, o desinteresse por esta arte continua. Um artigo de Robert Gottlieb, no primeiro número da N.Y.R.B. de 2016, chamado Dancing in the Dark, chama a atenção para o modo como a dança tem sido (mal) tratada pelo cinema e pela literatura. A única excepção que Gottlieb consegue apontar é o paradigmático Red Shoes, de Powell e Pressburger. ** os admiradores do cinema japonês não devem deixar de ver o tenebroso e inquietante Kurutta Ippeji/A Page of Madness, 1926, de Teinosuke Kinugasa, passado numa instituição para doentes mentais. Mesmo que não mantenha ao longo de tudo a história uma imagem ousada tem-nas suficientes para justificar um interesse enquanto filme de vanguarda. Jujiro/Crossroads, de 1928, tem algum interesse, deste ponto de vista, mas limitado a alguns planos. Kinugasa é o realizador do conhecido Jigokumon/The Gate of Hell, de 1954. *** Rien que les Heures, 1926, do realizador brasileiro Alberto Cavalcanti, é um documentário que se centra na exibição do quotidiano das classes desfavorecidas, interessante do ponto de vista de alguma imagética vanguardista. Tem a mesma estrutura na apresentação de um dia na cidade, neste caso Paris. Mais tarde, Cavalcanti, que foi colaborador de L’Herbier, viria a trabalhar com Ruttmann em Berlin – Die Sinfonie der Großstadt.