Fichas de Leitura h | Artes, Letras e IdeiasO poder de efabulação da ignorância Manuel Afonso Costa - 12 Mai 2016 Calvino, Ítalo As Cidades Invisíveis, Teorema, Lisboa, 1993 Descritores: Literatura Italiana, Fantástico, Fábula, Apólogo, Simbólico, Moradas, Espírito, 160 p.:21 cm ISBN: 972-695-171-2, Tradução José Colaço Barreiros [dropcap style=’circle’]I[/dropcap]talo Calvino é um dos escritores italianos mais representativos da literatura italiana do pós-guerra e de todo o século XX. Nasceu em Cuba na cidade de Santiago de las Vegas a 15 de outubro de 1923 de pais italianos que logo regressam a Itália; vindo a falecer em Siena no dia 19 de setembro de 1985. Foi um dos mais importantes escritores italianos do século XX. Tendo-se formado em Letras, dedicou-se à política desde cedo e participou na resistência ao fascismo durante a Segunda Guerra Mundial como membro do Partido Comunista Italiano, Veio a abandonar o partido em 1957, através de uma carta de desfiliação que se tornou célebre. A sua primeira obra foi este Atalho dos Ninhos de Aranha em italiano designado Il sentiero dei nidi di ragno publicado em 1947, ainda sob a influência da estética e ideologia neorrealista e da sua militância comunista e de resistência. Uma das suas obras mais conhecidas e mais genial são As Cidades Invisíveis, ou seja Le città invisibili de 1972; onde se evidenciam as personagens históricas de Marco Polo e Kublai Khan. Quanto a mim a sua obra mais importante é contudo o não menos famoso livro Se Numa Noite de Inverno um Viajante. O poder de efabulação da ignorância A estrutura de base das Cidades Invisíveis assenta numa hipotética, porém apresentada como factual, conversa entre o grande aventureiro e viajante Marco Polo e Kublai Khan, imperador mongol, chinês da estirpe dos tártaros. Marco Polo, supostamente, descreve ao imperador as inúmeras cidades do império do Meio que conhece e visitou e que o imperador não conhece. A imensidão do império inibe o seu conhecimento empírico. Isso incomoda o imperador, como incomoda toda e qualquer ignorância, mais ainda quando como neste caso a ignorância é provocada pelo estímulo do que de nós se esconde e guarda um mistério que ao longo do tempo se transforma em enigma. Marco Polo inteligentemente estimula esse enigma efabulando longamente sobre o que o imperador não conhece e ele também não. É aqui que reside a meu ver o golpe de génio de Calvino, efabular a partir do poder de efabulação da ignorância. O que não se sabe, o que não se conhece, é sempre infinitamente mais apaixonante e estimulante que o que nos é próximo e que é de nós conhecido e que dentro dessa proximidade se torna banal senão mesmo vulgar, no sentido literal do termo, mas também no seu sentido valorativo. Porém, se aquilo que se ignora possui um valor acrescentado, estranha-se que porfiemos em destruir essa reserva de prazer, esse el dorado, essa pérola de valor inestimável, procurando conhecer. Não obstante, até se percebe, se atentarmos no facto de que é no processo de desocultação que o prazer atinge o rubro. Podemos assim imaginar o gozo que deve ter dado ao imperador, a narrativa fantástica de Marco Polo, a mim deu-me e não sou dono de cidades de nenhum império; mas sabendo eu que a narrativa assenta em bases irreais, porque é que deu tanto prazer, a Kublai Khan e a mim por intermédio dele, a narrativa disso. Porque, como disse Saint Exupéry, o essencial é invisível ao olhar. Eu, até preferia dizer que o invisível é essencial ao olhar, invertendo a lógica da expressão, para assim poder enfatizar que desde logo o invisível existe e que portanto um outro tipo de olhar o vê. Essa visão é que é essencial. A grande cegueira é não ver esse invisível que nos habita de modo imemorial e eterno. Voltemos ao texto. A estrutura de base não assenta portanto numa hipotética conversa mas antes numa inventada hipotética conversa o que é apesar de tudo um pouco diferente no plano lúdico. Quando se chega a saber o que se desejava saber, pois é no plano da libido que estes conhecimentos se colocam, o fascínio desmorona. Desmoronaria para os actores e desmoronaria para nós, os leitores, por maioria de razão. Neste caso das Cidades Invisíveis não. E porquê? Porque rapidamente, mal a narrativa começa, se percebe a cumplicidade entre os dois intérpretes e porque para nós imediatamente passa a ser de outra ordem, que não a da verosimilhança, o que pretendemos saber. As cidades não nos interessam, a bem dizer nunca nos interessaram, mas interessa-nos aquilo em torno do qual se dá um acordo e uma cumplicidade entre os dois mentirosos. Chamo-lhes assim, ironicamente e por conveniência da minha própria efabulação. Eles sabem ambos que é de um excesso de verdade que se trata quando falam e se ouvem. Este diálogo poderia aliás ser interminável e aliás é interminável a não ser que num certo momento da nossa atenção lhe possamos e queiramos pôr termo. O que é que se passa então? Um diálogo apócrifo em que uma personagem fala do que nunca viu e outra finge acreditar no que ouve, quando tudo leva a crer só lhe interessa o modo de dizer, ou seja o modo de falar do invisível, do que não existe. Kublai khan representa-nos simbolicamente. Representa aquilo que em nós resiste à realidade do mundo; resistindo na nossa inesgotável imaginação e na insaciável necessidade de ilusão que sentimos dentro de nós. Por isso As Cidades Invisíveis são um dos textos mais alucinogénios da história da literatura, embora se saiba que a boa literatura nunca é outra coisa, senão uma droga dura, imaterial e abstracta. Desde o princípio se percebe que a cidade não é aqui de modo nenhum um conceito (e já nem escolho o semantema ‘realidade’) geográfico, pois desde o início que o jogo jogado entre os dois efabuladores procura na sua interacção a complexidade do modo de habitar o mundo, na lógica de uma simbologia da existência humana dentro das suas moradas invisíveis. O que seria de nós sem estas moradas inexpugnáveis. A que perigos não estaríamos sujeitos se nos faltassem as ameias e as muralhas espirituais. Ítalo Calvino disse a dada altura qualquer coisa como isto: “Se o meu livro As cidades invisíveis continua sendo para mim aquele em que penso haver dito mais coisas, será talvez porque tenha conseguido concentrar num único símbolo todas as minhas reflexões, experiências e conjecturas”. E esse símbolo só pode ser o invisível. Na problemática dos géneros eu seria levado a considerar As Cidades Invisíveis no domínio do Apólogo e da Fábula poética, ainda que não haja apologia de coisa nenhuma, mas antes qualquer coisa de onírico e vago. Todos sonharam este texto: Kublai Khan pelo desejo, Marco Polo como ambiguidade da memória, uma lembrança vaga e nós os leitores porque na primeira vez em que o lemos nos fica a sensação de já o termos lido ou mesmo de já termos falado aos amigos de cidades que tais como estas não existem. Mas tudo o que a obra é aparece nos seus subtítulos, o simbólico, a memória, a fronteira, o desejo, etc. Nem sei por que estou eu a escrever sobre As Cidades Invisíveis. Elas são infinitas e obsessivas, elas estão em nós e até às vezes fastidiosamente, elas são a nossa vida real e a imaginada, mas também morte e tédio e redenção, não acabam nem começam, desde sempre nos habitam com uma nitidez doentia e incómoda, uma morrinha, mas por outro lado também, de uma maneira sombria, esquiva, povoada de relâmpagos, … Habitam-nos a nós que somos parte delas e que sem nós elas não existiriam, mas nós também não, sem elas… É por isto, agora sei finalmente, que gostamos daqueles que nos perguntam pelos lugares que nos habitam e se mostram tolerantes relativamente às mentiras que urdimos. Para nós, que vivemos neste longínquo Oriente, não é a verdade ou a mentira dos lugares que nos preocupa é antes o podermos ou não ser capazes de corresponder à expectativa daqueles que nos interpelam, ávidos de mistério, sedentos de ser enganados tal como Kublai Khan. Seremos capazes de pelo menos uma vez sermos dignos de Marco Polo ou Calvino? Eu, por mim, já descobri mesmo em Macau, cidades como Leónia, Cecília, Pentesileia. Se me fosse dada a possibilidade de falar sobre as minhas cidades a oriente eu poderia organizá-las não segundo o critério de Calvino que explorou tópicos como: “as cidades e a memória”, “as cidades e o céu”, “as cidades e o mortos” etc., mas antes, de acordo com as minhas obsessões, em tipologias literárias ou cinematográficas, do género “As cidades com Lanternas Vermelhas”, “As Cidades com Aquários”, “As Cidades de Casas Vazias”, “As Cidades dos Candeeiros”, “As Cidades com gaiolas de Areia”, etc. De algum modo já as visitei e portanto poderei falar sobre elas. Talvez um dia o faça. Manuel Afonso Costa