VozesDireitos Humanos : Um saco de boxe sem protecção Sérgio de Almeida Correia - 10 Mai 2016 “L´avocat n´oubliera pas, qu’homme du judiciaire ou du juridique, il incarne un contre-pouvoir dans la société civilisé et libérale à laquelle il appartient. Investi à l´intérieur de cette société, d´un prophétisme propre qui lui a été confie par la tradition et l´histoire, il lui appartient de dénoncer les mauvais fonctionnements de la justice et de la société” – Jacques Hamelin et André Damien, Les Règles de la Profession d´Avocat, Dalloz, 1989 [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]crime é em si de uma natureza hedionda. A protecção das vítimas é fundamental, mas nada, rigorosamente nada justifica a forma miserável como os direitos humanos foram uma vez mais espezinhados. Estou perfeitamente tranquilo e seguro no que hoje aqui registo porque não conheço o visado, nunca o vi, nem sequer ao longe, e não sou advogado que no exercício da profissão frequente tribunais criminais ou pratique o direito penal. Mas é evidente que como homem, cidadão e também advogado não podia ficar indiferente ao triste espectáculo a que se assistiu na semana finda em Macau. Nada autorizava o que aconteceu, muito menos da forma ostensiva e repetida como aconteceu. Quando uma polícia de investigação apresenta os seus detidos à comunicação social, algemados e de capuz na cabeça já não é bonito. Quando esses mesmos detidos são nessas condições identificados pela sua nacionalidade, fazendo-se a distinção entre “cidadãos do continente”, “filipinos”, “residentes de Macau” ou “não residentes” já era igualmente mau. Mas quando, numa cidade como Macau, com uma comunidade portuguesa minúscula se apresenta um cidadão nessas condições e se diz que é português, de apelido tal, com X anos e com Y filhos menores com indicação das idades respectivas, é sinal que foram definitivamente ultrapassados todos os limites do admissível e se transformaram os direitos humanos na RAEM num verdadeiro saco de boxe. Quando uma polícia ou uma comunicação social permite que assim se actue, sem que fosse imediatamente ouvida na sociedade, uma voz que fosse, uma voz vinda da Faculdade de Direito de Macau, do seio da magistratura ou sequer dos advogados de Macau, está-se a ser objectivamente conivente com uma conduta que nos coloca ao nível dos mais atrasados e subdesenvolvidos países e regiões do mundo, ao lado daqueles que consideram os direitos humanos um campo privilegiado para a prática dos maiores crimes contra a civilização, contra o Estado de direito e contra as sociedades democráticas. O que na semana finda se deixou que acontecesse, feito pelas autoridades de Macau e por alguma da sua comunicação social, fosse propositadamente para atingir aquele cidadão, fosse para atingir a comunidade portuguesa ou por simples incompetência ou desatenção, é absolutamente intolerável numa sociedade civilizada. Porque ao identificar-se publicamente um detido a quem são imputados crimes de uma violência extrema, eventualmente cometidos sobre menores, dizendo-se sem qualquer pudor o seu apelido, a idade e o número de filhos, sexo destes e respectivas idades, está-se a passar uma sentença de morte cívica a um cidadão que ainda nem sequer foi acusado e cuja detenção ainda não fora validada por um juiz. As consequências, tanto quanto me foi transmitido por terceiros, também foram imediatas, traduzindo-se no despedimento laboral do visado. E como se isso não bastasse expuseram-se as crianças, que em vez de terem sido protegidas, como se impunha que tivesse acontecido, em especial porque se já estavam traumatizadas mais traumatizadas ficarão quando os colegas, que nisso a escola é terrível, começar a apontá-los a dedo como sendo as vítimas de um celerado, espezinhando-se os seus direitos à reserva e à protecção do Estado de direito. A forma como este tipo de situações tem vindo a ser tratada degrada-se de dia para dia. Alguns dos maus hábitos anteriores a 1999, designadamente, no que concerne à forma como se lidou com o crime organizado no tempo do último, e de má memória, governador português agravaram-se. Aquilo a que hoje assistimos é a um desmoronar com estrondo do edifício jurídico e judiciário que aqui havia sido construído. Recordo neste momento o artigo 10.º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que creio ainda estar em vigor na RAEM, o qual determina que “[t]odos os indivíduos privados da sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana”. Podia também mencionar o artigo 17.º (protecção contra intervenções arbitrárias ou ilegais e contra os atentados ilegais à honra e à reputação), 26.° (proibição das diversas formas de discriminação e protecção contra aquelas que existam) ou os artigos 1.º, 7.º ou 11.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de Dezembro de 1948. Muitos mais poderiam ser citados. Aquilo que aconteceu torna-se ainda mais grave porque os crimes em causa são de grande impacto social, criando-se uma situação de alarme que podia e deveria ter sido evitada. Numa região como Macau, numa cidade pequena, cujas fronteiras são altamente vigiadas pelas forças de segurança e de onde é quase impossível um cidadão português sair sem dar nas vistas, teria sido mais do que suficiente e razoável, sabendo-se que se tratava de uma pessoa integrada na comunidade, a trabalhar numa empresa conhecida, ter avisado os postos fronteiriços para a eventualidade de se prevenir a sua saída e ter convocado o visado para ir prestar declarações, se necessário montando um esquema qualquer de vigilância para prevenir eventuais tentativas de fuga e só se o notificado não comparecesse ir então busca-lo a casa e levá-lo sob custódia policial. Compreendo que esta forma de actuação, não menos eficaz mas seguramente bem menos espectacular, coaduna-se mal com o espectáculo mediático em que as polícias parecem apostadas, o que é feito com a conivência de gente responsável da sociedade civil e o silêncio de quem devia estar na primeira linha da defesa dos direitos humanos em Macau. Como advogado, membro da Ordem dos Advogados (Portugal) e da Associação dos Advogados de Macau, e conhecedor como sou dos estatutos que regem a minha profissão e, em especial, dos meus códigos deontológicos, na linha do republicanismo cívico aristotélico, não podia ficar calado. A minha cidadania e a profissão que abracei para poder lutar contra as injustiças desta vida e poder melhor servir os meus semelhantes não podiam ficar indiferentes ao que se passou. Não sou, não vivo, nem quero viver numa sociedade de símios, a quem a sorte dos outros é jogada à indiferença e ao arbítrio de quem tem a obrigação de proteger os seus cidadãos. Os direitos humanos não são um empecilho à vida, nem à realização da justiça. Os direitos humanos e a sua intransigente defesa, em quaisquer circunstâncias, são algo que se impõe a qualquer ser humano e a qualquer cidadão de mediana consciência. E a sua defesa e protecção são um dever indelével dos advogados e de todos os juristas sem excepção. Os direitos humanos não podem continuar a ser tratados em Macau como se fossem um saco de boxe onde são diariamente desferidos golpes, uns a seguir aos outros, sem que alguém diga basta. Espero que aqueles a quem está cometida a espinhosa tarefa de julgar e de lidar directamente com os crimes em causa tenham consciência do que se está a passar. Seria triste, muito triste, que a decisão que um dia venha a ser tomada seja, ainda que remotamente, influenciada pelo que acontece neste momento. A magistratura da RAEM tem o dever de pôr termo a este espectáculo indecoroso que está recorrentemente a acontecer em matéria de protecção e respeito pela dignidade humana e de qualquer cidadão. E ela é a última garantia de cumprimento da lei e de protecção dos direitos humanos que os cidadãos têm. Instrumentos jurídicos não faltam. Oxalá que o bom senso também não comece a faltar porque nesse dia estaremos todos desgraçados e a caminho de um inevitável e penoso regresso à Idade Média.