Eventos MancheteLuiz Ruffato, escritor e colunista no El País : “Os intelectuais brasileiros são muito covardes” Filipa Araújo - 10 Mar 2016 Numa pausa entre livros, Luiz Ruffato fala-nos do mundo, da política brasileira, da literatura elitista e da falta de partilha de letras entre Portugal e o Brasil. Para o autor, os intelectuais devem assumir posições sociais e no seu caso não se importa de não ser reconhecido como escritor quando o chamam para discutir ideias Portugal e Brasil estão mais ligados no mundo da literatura por partilharem a mesma língua? Tenho uma visão muito pessimista da relação entre o Brasil e Portugal, porque é uma relação muito difícil, por ser o único caso em que o colonizado assumiu uma proporção política e económica maior que o colonizador. Isto acabou por provocar um sentimento negativo entre estes dois países. Não existe no Brasil esta relação que Macau tem para com Portugal. A maioria dos brasileiros não tem qualquer relação com Portugal. Existe um certo desprezo. Mas por outro lado existe também um Portugal que tem uma ideia muito má do Brasil. Num determinado momento chegaram muitos brasileiros a Portugal que acabaram por deixar uma imagem de prostituição e de pessoas irresponsáveis. Isso é verdade? Não, antes pelo contrário. O Brasil é um país super trabalhador, há muitas coisas no Brasil que seriam muito interessantes para os portugueses conhecerem. Em relação à literatura, nós conhecemos a portuguesa… mas só as pessoas que lêem. O contrário não é verdade, os portugueses não conhecem nem querem conhecer a literatura brasileira, não dão a menor importância, alegando uma certa dificuldade em perceber esta literatura. Isto é uma contradição, ou seja [se os portugueses] têm dificuldade em perceber então não estamos a falar a mesma língua. Mas se dizemos que não é a mesma língua, os portugueses ficam chateados. É a única coisa que resta a Portugal? Daí o não apoio ao Acordo Ortográfico? (risos) Todas as vezes que vou a Portugal perguntam-me o que acho do AO e digo: nada. Para nós isso tem zero importância. Mas eu sei, é a única coisa que vocês têm. É um problema. Gostaria que nos sentássemos e resolvêssemos os nossos problemas. Colocávamos dinheiro no Instituto Camões e ele deixava de ser português para ser lusófono. Ensinava língua brasileira, africana… cultura, literatura. Mas isto vai acontecer? Nunca. O que vai acontecer é que vamos cada vez mais distanciar-nos, o português de Portugal vai acabar por ser um mero dialecto da língua brasileira. Há um exemplo muito concreto: eu num carro com um motorista brasileiro e dois portugueses atrás. Eles a conversarem e o motorista intervém dizendo: “desculpem, vocês estão falando uma língua que eu entendo bastante, que língua é essa?”. Bem, aquilo deixou os portugueses surpreendidos e eles disseram que falavam Português. E o motorista perguntou de que país eram porque ele não sabia que em Portugal também se falava Português. Desde crianças que nós achamos que falamos Português, nós brasileiros. Por isso é que acho que daqui a uns anos isto poderá acontecer. Acha que os seus livros são mais lidos no Brasil ou no estrangeiro? Mais lidos não sei, devido ao elevado número de pessoas. Mas com certeza tenho mais visibilidade fora do Brasil, isso é indiscutível. No seu livro “A História Verdadeira do Sapo Luiz”, que ganhou a 57ª edição do Prémio Jabuti de livros infantis, conta a história de um sapo que nunca se tornou príncipe, porque não precisamos de ser príncipes para termos um lugar no mundo. Faz muitas vezes referência à sua origem, mostrando-se como alguém que não é filho de intelectuais mas conseguiu entrar neste mundo da literatura. Há uma ligação? O Luiz é o sapo da fábula? Sim, eu sou o sapo que não [se transformou] num príncipe e não é por isso que não sou feliz. (risos) Na sociedade brasileira 99,99% dos escritores são filhos de classe média alta, em geral são pessoas que tiveram em casa uma biblioteca, eram filhos de intelectuais. E isso é reproduzido na literatura, mesmo quando escrevem de pobres e bandidos. Como não sou filho de classe média, a minha biografia é diferente e isso deu-me um lugar dentro do mercado literário, do seu sistema, bastante diferenciado. Cada vez menos, é certo. Mas subjectivamente continuo a ser alguém que entrou pela porta dos fundos. Sente-se muito essa diferença? Sim, muito. Basta olhar para o tipo de personagens que uso na minha literatura, não são comuns na literatura brasileira. O tipo de actuação que tento fazer nas colunas do El País, que é discutir política. Os intelectuais brasileiros são muito covardes, eles preferem não discutir. Não se posicionam no mundo político… É muito difícil encontrar alguém que se posicione de forma clara. Mesmo quando são discutidas questões mais ligadas à literatura é muito comum encontrar um escritor que diga: “o que tinha a dizer está escrito nos livros”. Isto é uma estupidez imensa. Portanto, neste sentido, sim, optei por ser sapo num sistema literário. Os seus livros são o retrato de uma classe que não a média alta, que não os intelectuais. Nasceu por ninguém escrever sobre este grupo? Comecei a escrever exactamente por isso, ninguém escrevia sobre as pessoas que eu conhecia. Isto incomodava-me muito, achava super estranho. Como não existia uma literatura que falasse da classe que trabalha eu decidi escrever. Não foi uma necessidade que nasceu de dentro para fora, foi ao contrário. Eu escolhi escrever sobre isto, foi sempre muito claro, muito intencional. Mas marcou uma posição muito clara de actividade social depois do polémico discurso na Alemanha, em 2013, onde apresentou várias críticas ao Brasil… Depois desse discurso muito professores de escolas secundárias e de lugares distantes imprimiram esse discurso e levaram para a sala de aula. Acho que bastantes pessoas que hoje me conhecem não me conhecem como escritor mas sim devido àquele discurso. Não há problema algum, não lamento que não leiam os livros. Mas sim, depois desse discurso recebi várias intervenções da sociedade e pedidos para conversar e saber das minhas ideias. Queria ser mais conhecido como escritor, claro, mas num país como o meu, que é horrível, que tem um nível de educação baixo, com problemas políticos graves, querer abrir mão deste papel, lugar e espaço é quase criminoso. Portanto fico frustrado por ser pouco lido? Claro que sim. Mas é importante que me procurem como pessoa que dá opinião? É. Abdicava dos livros por este lado político? Sinceramente, se pudesse actuar de uma maneira mais efectiva, não digo político institucional, abria mão dos meu livros. Está a fazê-lo na sua coluna no jornal El País… Sim, de alguma maneira. É algo que consome muito tempo, muito esforço e um problema sério, é que todas as vezes que escrevo alguma coisa perco leitores. (risos) É o meu papel, enfim, acho que é. Escrevo semanalmente, é uma loucura, são colunas muito polémicas. Hoje no Brasil quando criticamos o Governo somos da oposição, mas se criticamos a oposição somos do Governo. Isto é errado. O bom é termos independência, quer dizer, até podemos estar errados quanto às nossas opiniões, mas é melhor estar errado pela nossa cabeça do que estar certo de coisas que não são nossas. Prefiro estar equivocado e ter menos leitores. Deixou o jornalismo para se dedicar exclusivamente à escrita. Isso mesmo. E isso era muito incomum, era raro. Ainda é raro encontrar alguém no Brasil que se dedique exclusivamente à literatura. Fiz essa opção. Em alguns entrevistas cheguei a dizer que tinha orgulho que a literatura me fizesse ganhar dinheiro, que vivia disso. Isso para os intelectuais era uma vergonha, porque eles não precisam disso. Isto para mim é profissão. Tenho muito orgulho nisso, gosto muito. Em que é que mais de 15 anos na área o ajudaram como escritor? Não tenho dúvidas de que o jornalismo é a mais importante arma da democracia, não tenho nenhuma dúvida. Mas o meu papel no jornalismo era ridículo. Sempre fui um péssimo repórter, digo repórter, não jornalista. Sou muito tímido, morria de vergonha de fazer perguntas, e o jornalista tem de ser cara de pau e “encher o saco”, como dizemos (risos). Isso chateava-me imenso. Muito cedo, dentro do jornalismo, percebi que gostava de inventar reportagens (risos) e como isso não pode acontecer comecei por ficar dentro da redacção. E aí sim, como redactor e editor era bom, isso era. Mas ainda assim era frustrante, ao mesmo tempo via que tudo o que me interessa era exactamente aquilo que não interessava. Até que um dia decidi deixar e tentar literatura. Como escritor, o jornalismo não me deixou nada. Como está o jornalismo no Brasil? Há muitos anos que a entrada da internet no mundo fez com que fosse necessário discutir o formato [do jornalismo]. O grande problema, focado na imprensa, é que o número de pessoas que lê é pouco e as pessoas que lêem começaram a ficaram cada vez mais desinteressadas, porque os jornais não conseguiram resolver o problema da internet. Há um problema também na diversidade ideológica, no Brasil, nos jornais. Todos defendem interesses iguais. Por exemplo em Portugal, vamos comprar um jornal e conseguimos ver diferentes interesses. No Brasil isto é impossível. Todos os jornais são iguais. Há também uma perda na credibilidade, o leitor perdeu a confiança. Muitas teses de mestrado e doutoramento tiveram como base os seus livros. Como vê a educação brasileira actualmente? Tenho várias teses, em várias universidades. É interessante observar como é que de alguma maneira os meus livros foram incorporados no sistema de educação. [Mas o ensino é] horrível, é horrível. Temos um dos piores índices da avaliação internacional que é feita. O sistema educacional é um fracasso completo. A grande crítica que faço ao Governo é essa, nunca imaginei que com o PT [Partido dos Trabalhadores], eu que ajudei a formar o partido, tivéssemos estas mudanças absurdas estando no poder. Imaginei uma mudança fundamental na educação, mas não foi feita. Porquê? Como é que se perdem os valores? Poder. O Frei Betto, que é um frade católico meu amigo, escritor, foi do primeiro Governo de Lula durante dois ou três anos e saiu logo. Continua próximo do PT, mas não do Governo. Depois de sair escreveu um artigo que tinha esta frase que, acho eu, ser a síntese do problema do Brasil: “O PT trocou um programa de governo para um programa de poder”. É este o problema. O seu último livro foi em 2014, teremos um novo livro este ano? Nos último quatro anos tenho ficado mais tempo fora do Brasil do que dentro. É bom para conhecer outras coisas e partilhar trabalho, mas o lado mau é que fico sem tempo para me dedicar à escrita, agravado pela coluna semanal. Dificilmente vou conseguir terminar alguma coisa, um novo livro talvez só em 2018.