VozesValerie a Týden divů, Jaromil Jires, 1970 Boi Luxo - 3 Nov 2015 [dropcap style=’circle’]V[/dropcap]alerie… é um filme que permanecerá sempre como algo de íntimo. Pode pensar-se que mais ninguém viu este filme e que aquilo que pensamos que ele é não passa, afinal, de um grande engano ou de algo que nos aconteceu na florescência da adolescência. Housu, de Nobuhiko Obayashi, também é assim – partindo do princípio que existe e que não é apenas uma alucinação. Valerie… é a prova de que existem vampiros – e não apenas no cinema – e de que os padres e a religião são uma influência perniciosa para o crescimento. Assim, é um filme que sublinha um tipo de credibilidade. No que diz respeito ao crescimento e à função mágica da inocência estou preparado para acreditar mais neste filme que em qualquer outra fonte. Seria tentador repetir algum texto que aqui já se ofereceu sobre a Nova Vaga checoslovaca mas não seria mais do que isso, uma repetição. Chegue recordar que na Checoslováquia se fizeram alguns dos mais interessantes filmes europeus dos anos 60 e 70. Parte dos nomes mais conhecidos deste saboroso cinema já por aqui passaram, Jan Svankmajer (a propósito de um filme de 1994, Fausto), Vera Chytilová (o delicioso, voluptuoso, surrealista Sedmikrásky/Daisies, 1966) e Juraj Herz (o inquietantemente actual Spalovac mtrvol/The Cremator, 1969). Lembrar que, para além dos filmes em cima indicados, o hilariante The Firemen’s Ball, de Milos Forman, o intrigante Closely Watched Trains, de Jiri Menzel e o extraordinário Marketa Lazarová, de Frantisek Vlacil (talvez o filme cujo desconhecimento geral mais me espanta) são dos anos 60, serve como alerta suficiente para a riqueza do cinema checoslovaco desta época de aberturas e repressões. Jan Svankmajer estava ainda a fazer apenas as muitas curtas metragens que o tornaram famoso e que não terão deixado de marcar toda esta geração. A sua primeira longa metragem, Alice, é de 1988.* Valerie é a rapariga de 13 anos a cujo crescimento assistimos. O aparecimento da sua primeira menstruação marca o início de uma viagem em que ela se vê assaltada pelo mundo, num ambiente pagão e surrealista onde o sangue que os vampiros desejam tem uma marca central para além da marca da sua entrada no mundo adulto. A jovem pende mais para a chegada de um grupo de actores que para a chegada (ansiosamente esperada pela erótica avó, fria como a neve) de um grupo de missionários. Esta avó, atraente lúbrica penitente, faz a ponte entre o universo virginal da jovem Valerie e o interesse material, sexual e monstruoso da classe clerical que invade a aldeia e a assedia constantemente. Muitos dos mistérios que se tecem ao longo do filme não alcançam resolução e esta fragmentação narrativa é uma das suas atracções. Aparentemente, os saltos e desvios que no filme se notam reproduzem os que se lêem no livro de Vitezslav Nezval em que aquele se inspirou. De que serve saber quem é o verdadeiro pai de Valerie ou como é que esta sobrevive à fogueira a que o padre que a tenta molestar a condena, quando o que verdadeiramente desejamos é que Valerie olhe para nós de frente e nos assegure de que para lá do mal está a sua inviolável donzelice. No fim, a figura da pequena jovem sai vencedora de todas as ameaças vampíricas e clericais à sua integridade. A opção onírico-vampírica que anima o filme de Jaromil Jires – seguindo uma tradição narrativa popular estabelecida no cinema da Europa de Leste que os vários regimes comunistas não viam como ofensiva – torna-se mais dolorosa se a virmos como um desesperado escape à repressão e ao obscurantismo que se seguiu às aberturas da Primavera de Praga. Explica Jana Prikril (autora do texto que acompanha uma edição recente do filme) num artigo constante de uma edição de início de Outubro de 2015 da NYRB, que esta é uma altura em que as autoridades checoslovacas baniram os filmes de alguns dos autores mais famosos mas se esforçaram, também, por manter a ilusão de uma cinematografia continuada e de sucesso. Ironicamente (veio a descobrir-se mais tarde), o poder via Menzel e Jires como dois realizadores capazes de fazer, com sucesso, filmes acessíveis ao público. Não foi isso que aconteceu com este filme que aqui se distingue.** Com o onirismo e o cliché do filme de vampiros mistura Jires uma outra face pagã e lírica, e desta ousada fusão resulta um filme que os censores inexplicavelmente não proibiram – como acontecera com a sua longa metragem anterior, The Joke (1969), muito mais abertamente crítica e de um nihilismo mole humoristicamente contrário ao optimismo oficial dos inícios do comunismo da era do pós-guerra. O absurdo de algumas das demonstrações de Valerie age eficazmente como exibição dos absurdos do regime mas os seus censores parece não terem entendido a sua mecânica. Passados quase 50 anos, Valerie a Týden divů torna-se cada vez mais delicioso e cada vez mais improvável. Ao contrário de Krik/The Joke ou Zerk/The Cry, a passagem do tempo tem-lhe trazido favores inesperados. * ver as cerca de 15 curtas-metragens que Jan Svankmajer realizou nos anos 60 e 70 é um inestimável avanço no conhecimento do cinema checoslovaco destas duas décadas. Svankmajer continua em actividade e espera-se com ansiedade a conclusão de The Insects. ** O regime queria “filmes para o público, filmes para hoje, filmes para socialistas”. Quase 50 anos depois é espantoso e doloroso verificar que há países em que esta prática totalitária persiste e que filmes que deveriam ser orgulhosamente celebrados como exemplos de criatividade são, ao invés, escondidos da população ao mesmo tempo que os seus autores são perseguidos.