VozesAmorficidade Fernando Eloy - 22 Out 2015 [dropcap style=’circle’]S[/dropcap]abe aquelas ocasiões em que nos sentimos renitentes de ir a algum lugar ou de fazer alguma coisa inquietos pela possibilidade de desfazermos a magia de tempos passados ou de que a experiência nos faça mesmo arrepender? Um pouco como aquela ideia de não voltarmos onde fomos felizes. Não concordo em absoluto com ela pelo seu implícito determinismo, pois nem sempre assim é, mas acontece. Acontece por tendermos a querer repetidas as sensações daquela incrível e inesquecível vez. O bom senso, todavia, diz-nos para não cairmos nessa tentação, para baixarmos as expectativas sob pena de não nos abrirmos a novas possibilidades, para evitarmos as comparações. Mas, às vezes, mesmo com as cautelas todas de prevenção, mais valia não termos saído de casa. Tal como me aconteceu a passada semana quando as Danças Ocultas tiveram a gentileza de me convidar para assistir ao espectáculo deles na fortaleza do Monte. Não fosse isso e não tinha lá posto os pés porque as boas memórias passadas naquele lugar são preciosas demais para correrem o risco de serem ofuscadas por experiências menores; mas foi o que aconteceu; é como ver fogo de artifício depois de o ter admirado da melhor forma possível, como um dia aconteceu na ribeira de Lisboa: deitado, de barriga para o ar, com o fogo a rebentar lá em cima em ecrã panorâmico. Depois disso podem rebentar as canas que quiserem pois nunca mais vai ser igual. O fogo de artifício vê-se deitado. Ponto. Neste caso, o problema não era o espectáculo, longe disso, o problema foi o Festival de Artes de Macau, ou seja, a forma como agora é organizado, ou seja, tenho dúvidas porque ainda mantém a designação de festival. O problema foi o concerto ser na Fortaleza do Monte, ao ar livre. Estranho, não é? Passo a explicar: no geral e em particular. No geral a sensação que tenho, o leitor poderá ter outra evidentemente, é o que o Festival de Artes de Macau tem vindo a perder a piada e a questão não se prende com os artistas seleccionados mas com a forma amorfa como é organizado. Voltemos à Fortaleza do Monte. Em tempos que infelizmente já lá vão, era uma verdadeira festa. As pessoas passeavam livremente pelo espaço, fumavam, bebiam, riam-se, viviam o espectáculo e confirmavam a ideia de festival, numa palavra: conviviam. Já não. Agora é como ler o manual de uma máquina de lavar; o mesmo nível de excitação. Depois dos espectáculos, na Fortaleza ou noutro lugar, os músicos eram frequentemente conduzidos pela mão das saudosas produtoras do Festival, imiscuíam-se na vida local e andávamos todos em festa por estes dias. A ideia de levar parte do festival para a fortaleza foi excelente e era normalmente o ponto alto. Agora, ao revelar de forma lancinante a falta de espírito com que é organizado, é seguramente o ponto baixo. Foi arregimentado. As senhoras que vendiam bebidas lá em baixo, na porta dos fundos, foram proibidas de abrirem a porta. A zona de pé junto ao palco foi eliminada e substituída por uma amorfa plateia de cadeiras mal desenhadas que partem as costas a qualquer um ao fim de meia hora, estrategicamente colocada a uma distância “segura” do palco para inibir qualquer interacção mais íntima com os músicos, por isso não terá sido à toa que apesar do excelente espectáculo que as Danças e o Pedro Moutinho proporcionaram não se tenha ouvido um pedido de encore sequer! Estava tudo frio. O espectáculo começou com o anúncio de um rol de proibições: não se pode beber, não se pode comer, não se pode fumar (ao ar livre), não se pode fotografar, não se pode, não se pode… Não é mais um festival, é uma aula de escola primária chinesa. O moral que o mais ingénuo ainda poderia ter ao deslocar-se para uma festa é logo aniquilado ali. Depois o espectáculo segue sem erros nem convulsões com um público a amarfanhar e desejoso de sair daquelas putas daquelas cadeiras. Ainda se poderia pensar que as (mal)ditas estão ali por preocupação (legítima) para com as pessoas que não querem, ou não podem, estar de pé. Mas, se assim fosse, as escadas rolantes não estariam encerradas, nem as cadeiras eram tão más. Claramente o espectáculo na Fortaleza do Monte não é feito para pessoas de mais idade ou com problemas físicos, caso contrário não nos obrigavam a subir uma ladeira a pique ou a escadaria que não mais acaba para lá chegarmos. Um contra-senso sem nome de uma organização aberrante. Organizar um concerto ali ou no Centro Cultural é praticamente a mesma coisa com a vantagem das cadeiras do Centro serem muito melhores. Uma festival é (devia ser) uma festa. Uma oportunidade de contacto e confraternização que não obedece a estes estratagemas rígidos, e ridículos, que o Instituto Cultural tem vindo a implementar. Neste caso particular, o do concerto a que me refiro, não seria mais agradável as pessoas terem uns snacks, um vinho, uma laranjada à disposição e poderem desfrutar do prazer de um concerto ao ar livre? Acham que nessas condições os músicos teriam saído frustrados (como saíram) sem um pedido de encore? Não foi por falta de merecimento mas porque as condições não estavam criadas para que o público se envolvesse. E as meninas, coitadas, de mão em riste a darem-nos indicações… Credo! De vir às lágrimas. Mesmo! A seguir, porque a perspectiva actual do Instituto Cultural é claramente funcional, ninguém da organização quis saber dos músicos para nada, ninguém os guiou a lado nenhum, ninguém os levou para o contacto com a população… até o autocarro desapareceu deixando-os apeados. Austeridade, talvez… Serviço cumprido, cheque entregue, haveria com certeza mais cadeiras para montar algures. Triste, profundamente triste. Muita coisa mudou para pior em Macau nos últimos anos, algumas para melhor naturalmente, mas as mudanças para pior estão invariavelmente ligadas com a falta de espírito presente nas decisões burocráticas, ou com a aniquilação da alma da cidade. Não basta apregoar que Macau é diferente, tem mesmo de ser e não é com esta atitude cinzenta e fria do Instituto Cultural que essa diferença se assume. Antes pelo contrário. E não me venham com as leis disto ou daquilo, com as queixas, ou lá com o diabo que quiserem. Falta-vos atitude amigos do IC, faltava-vos atitude e calor humano. Um festival faz-se com pessoas que pensam para além das ordens de serviço, para além das horas extraordinárias, para além das propostas burocráticas. Um festival faz-se com alma e respeito pelo que a palavra quer dizer: festa! Talvez o problema esteja na expressão em chinês que aponta apenas para “época das artes”, talvez. Mas numa terra que se orgulha da transferência de culturas ao longo de séculos não pode ser assim. Nem na China assim é, ou já se dignaram a ir ao festival de praia do Dia da República que se organiza em Zhuhai todos os anos? Polícia a rodos, é certo, mas toda a gente pula, come, bebe e confraterniza. Na China avança-se, em Macau recua-se. Bem vindos ao centro MUNDIAL de lazer. Bem vindos ao império da frieza e do funcionalismo. Bem vindos à Amorficidade. MÚSICA DA SEMANA Velvet Underground and Nico – “I’ll Be Your Mirror” I’ll be your mirror Reflect what you are, in case you don’t know I’ll be the wind, the rain and the sunset The light on your door to show that you’re home When you think the night has seen your mind That inside you’re twisted and unkind Let me stand to show that you are blind Please put down your hands ‘cause I see you I find it hard to believe you don’t know The beauty you are But if you don’t let me be your eyes A hand to your darkness, so you won’t be afraid When you think the night has seen your mind That inside you’re twisted and unkind Let me stand to show that you are blind Please put down your hands ‘cause I see you I’ll be your mirror I’ll be your mirror