h | Artes, Letras e IdeiasNotícia da explosão antes dela ocorrer José Simões Morais - 28 Set 2015 [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o início de Outubro de 1850, o Tenente Luís Maria Bordalo em Macau acabava de receber uma carta do irmão, escrita em Lisboa entre finais de Agosto e princípios de Setembro. Francisco Maria Bordalo mostrava-se preocupado pois na capital corria o rumor sobre uma explosão na fragata D. Maria II estacionada em Macau. Perguntava-lhe pela saúde, como desejo de resposta ao acontecimento que escutara. Estranha história a que leu sobre tais rumores e logo na fragata D. Maria II em que andava embarcado. Os territórios portugueses do ultramar eram desde há muito cobiçados por holandeses, ingleses e franceses e como elemento dissuasor, em meados do século XIX foram “estabelecidas as estações navais, isto é, agrupamentos de um ou mais navios cujas missões eram coordenadas pelo comandante do navio mais antigo e que permaneciam na área durante um período prolongado”, como explica Rodrigues da Costa. Já Luís Gonzaga Gomes referia que a 10 de Setembro de 1850, a estação naval compunha-se da fragata D. Maria II e das corvetas à vela Iris e D. João I, tendo os três navios 559 praças de guarnição. Esta imponente fragata, construída por volta de 1810 em madeira teca, fora comprada à Inglaterra em 1831 pelo Rei D. Pedro IV. Tinha então o nome de Ásia, sendo também na mesma altura adquirido o navio Congress. Mudaram ambos o nome, ficando a fragata a chamar-se D. Maria II, nome da filha de D. Pedro e que seria coroada a 15 de Setembro de 1834, passando o Congress a ter o nome de Rainha de Portugal. Estes dois navios eram os principais da esquadra liberal e a fragata D. Maria II estivera nos momentos decisivos da restauração do regime liberal, em 1832. Primeiro, na Ilha Terceira nos Açores, depois no desembarque das tropas liberais de D. Pedro na Praia do Mindelo para irem ocupar a cidade do Porto e por fim, nos bloqueios do Tejo. Após terminada esta guerra entre D. Pedro e D. Miguel, ambos filhos de D. João VI e com a nova Constituição Setembrista de 1838, que representou a primeira tentativa de reconciliação entre as duas posições constitucionais antagónicas (a democrática de 1822 e a realista de 1826), a fragata fez três viagens até à Índia. Entre 1846 e 1847 participara nos combates contra a Junta Revolucionária de tendência miguelista. Voltou a fragata à Índia em 1849 sendo então comandada pelo Capitão-tenente Francisco de Assis e Silva. Estando em Goa, foi requisitada para Macau onde a 22 de Agosto de 1849 o Governador Ferreira do Amaral tinha sido assassinado. Aqui chegada a 3 de Junho de 1850, a fragata D. Maria II com os seus quarenta e dois canhões integrou a Estação Naval de Macau, conjuntamente com as corvetas à vela Iris e D. João I. Explosão na Fragata Francisco Maria Bordalo, no seu livro ‘Um passeio de sete mil léguas’ descreve que: “Em mais de metade do seu curso ia o dia 29 de Outubro de 1850. Um formoso sol alumiava a enseada da Taipa, onde se baloiçavam dois vasos de guerra, vistosamente adornados de flâmulas e galhardetes, trajando suas melhores galas, e saudando com o ribombo do canhão o aniversário de um rei filósofo e artista. Acabavam de soar duas horas e meia nos sinos das embarcações, quando uma delas se ergueu com todo o seu peso sobre o dorso das águas, despedaçou-se com um estampido medonho, e de entre colunas de fumo e fogo arrojou para longe de si madeiros, canhões, ferragem e cordoalha…” Ocorreu essa violenta explosão na fragata portuguesa D. Maria II, fundeada na Taipa, em frente de Macau, onde se encontrava ancorada no dia do aniversário do Rei D. Fernando (segundo marido da Rainha D. Maria II), quando estava em vésperas de largar para a Índia. “Da corveta americana Marion, que ali se encontrava também ancorada, correndo grande risco, acudiram com destemida coragem os seus oficiais e marinheiros, porém, apenas puderam recolher os restos mortais de algumas das vítimas” Luís Gonzaga Gomes. A corveta Marion escapou com muita sorte ao iminente perigo pois, estava fundeada a pouca distância da fragata e viu passar a artilharia desta entre os seus mastros, ficando apenas com cabos cortados e um ferido. Os marinheiros da corveta, ainda havia pequenas explosões e já arriscando as suas vidas, prestavam socorro, conseguindo retirar dez homens do que restava da fragata, encontrando-se todos muito feridos. Carlos José Caldeira, no seu livro ‘Apontamentos de uma Viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa’, refere encontrar-se no palácio episcopal quando escutou um grande estrondo e detonação que abalou a cidade quebrando vidraças, “indo às janelas que deitavam para a Taipa, vi uma espessa e negra nuvem de fumo na direcção em que estava a fragata, e quando foi correndo vagarosamente com o vento, apareceu apenas uma parte da popa do navio, que daí a pouco começou a arder. Corri à Praia Grande e encontrei o ajudante do governador Leite a embarcar numa lorcha para o lugar do desastre; acompanhei-o, e presenciámos ainda no caminho duas explosões parciais. Fomos os primeiros que de Macau chegámos a bordo da Marion, e vi o mais doloroso espectáculo que jamais presenciei. Os corpos de dez homens desfigurados, e com os membros quase todos despedaçados, jaziam no convés banhado de sangue, dando os mais lamentosos gritos; era uma cena de cortar o coração. Tinham sido tirados dos restos da fragata, ou do mar pelos escaleres da Marion; entre eles havia o tenente mouro ou lascar Vsangi, e o guarda-marinha João Bernardo da Silva Pereira, que estava de quarto, e que morreu à minha vista em tormentos horríveis. Daí a pouco chegaram os escaleres da Íris e da D. João, e o próprio comandante da estação, e em seguida foram os feridos conduzidos para o hospital em terra, onde depois todos vieram a morrer, à excepção de um grumete português.” Segundo o que conta Marques Pereira, pereceram “cento e oitenta e oito vidas da guarnição, proximamente quarenta de chineses que estavam a bordo, ou junto do navio, e de três marinheiros franceses, presos. Escapou vivo da catástrofe só um grumete, chamado Barbosa”. Manuel Teixeira refere que os três marinheiros da galera francesa Chilli estavam na fragata detidos. “Dos salvados porém viveram cinco, sendo deste número dois chinas dos trinta que, se supõem, estavam a bordo, e nas embarcações que se achavam atracadas à fragata, os quais, com a única excepção daqueles dois, pereceram todos.” Por se encontrarem em terra, da guarnição escaparam à explosão trinta e seis praças e entre eles o segundo-tenente João Maria Celestino e o Aspirante Francisco Assis da Silva, filho do Comandante, que doente estava no hospital. À noite, a parte da fragata à tona continuava numa grande fogueira de madeira teca no “meio da água, como luz sinistra, ou tocha funerária ardendo sobre o sepulcro de tantas vítimas” na escuridão de um episódio de má memória. O suspeito responsável pela explosão Se a maior parte dos corpos ficaram despedaçados pela explosão e desapareceram nas águas, setenta e um cadáveres foram sepultados, sendo oito provenientes dos que tinham sido salvos pela corveta americana Marion, mas desses, apenas sobreviveram dois chineses. O cadáver do Comandante, o Capitão Tenente Francisco de Assis e Silva, foi encontrado dois dias depois, sendo sepultado no Cemitério de S. Paulo com todas as honras que lhe eram devidas. Segundo o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 16 de Novembro de 1850: “Impossível é explicar a causa da horrível catástrofe. Sendo bem sabida a severa disciplina, e a boa ordem que o Comandante Assis mantinha a bordo do seu navio, não se pode atribuir aquele desastroso acontecimento a algum descuido havido na ocasião da Salva, que nesse dia se fez a bordo; muito especialmente se nos lembrarmos que a explosão teve lugar duas horas depois não se tendo observado sinal ou indício algum de incêndio a bordo, nem de bordo da Corveta Americana Marion, que estava fundeada mui próximo da fragata, nem do posto da Taipa; o que faz crer que a explosão foi efeito de fogo lançado no paiol da pólvora; mas como, ou por cuja agência, só Deus sabe, e é possível que nunca venha a descobrir-se.” Assim, a causa da explosão no paiol onde se encontravam trezentos barris de pólvora deveu-se a alguém ter aí posto fogo. Carlos José Caldeira no seu livro diz: “A fragata foi destruída pela explosão do paiol da pólvora, onde se levou fogo de propósito, ou por descuido; pelo que disseram os que sobreviveram algum tempo a esta catástrofe, torna-se provável a primeira hipótese: o fiel da artilharia era um conhecido malvado, bêbedo relaxado, e tinham-se-lhe ouvido ameaças de praticar tal atrocidade, por ocasião de receber alguns castigos; naquele mesmo dia antes da salva, parece que o próprio comandante lhe puxara pelas barbas, por alguma falta no serviço.” Carlos José Caldeira refere: “O grumete português Barbosa, único que sobreviveu a esta espantosa catástrofe, foi por uma leve falta chibatado a bordo da D. João pouco tempo depois de restabelecido, e daí a pouco desertou do serviço. Teve razão de fugir por tal acto de barbarismo, ou de inadvertência.” Um estranho enigma O texto oficial que narra o acontecimento apareceu no Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor de 15 de Fevereiro de 1851 e terá sido escrito por Carlos José Caldeira, na altura responsável pela redacção do Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, como refere Rogério Beltrão Coelho na Revista Macau de Janeiro 98 ao falar do Livro “Memória de 1850” de Carlos José Caldeira editado em 1997 pela Quetzal. Nesse Boletim do Governo lê-se uma notícia do Friend of China de 22 de Janeiro de 1851 onde se refere o seguinte: “Cinco dias antes da explosão da Fragata D. Maria II, na Taipa, uma nau Turca de primeira ordem, com 104 canhões e 700 homens e o Vice-Almirante a bordo, voou pelos ares em Constantinopla. O Malta Times de 12 de Novembro refere que a nau se denominava Neiri Cheykit e que além dos 700 homens da tripulação havia a bordo 200 recrutas de outros navios. O Sultão tinha tido grande desgosto com este desastre e com a sua liberalidade costumada, mandara 100 000 piastras do seu bolsinho para distribuir entre as viúvas e os órfãos da tripulação e tinha ordenado que de todos se fizesse uma relação com o fim de lhes conceder pensões. Nesta catástrofe se perdeu a flor da oficialidade da Marinha Otomana.” Segue-se outra notícia do China Mail de 23, o Daily News de 20 de Novembro, diz: “Notícias recebidas pela mala da Índias Ocidentais nos referem o facto que no dia 24 de Agosto de 1850 a bordo do navio de guerra inglês Sieift, tendo sido repreendido por negligência nas suas obrigações o Fiel de artilharia Villiam Muir, dirigiu-se este ao fogão da proa, acendeu um murrão e foi descoberto pelo cabo do destacamento no acto de entrar no paiol, com a intenção de fazer voar o Navio.” E continuando no Boletim do Governo: “São bem singulares as circunstâncias deste facto, pela semelhança que apresentam, com as que provavelmente precederam a explosão da Fragata D. Maria 2a., segundo a conjectura mais provável que pode explicar aquele terrível sucesso e que o atribui ao Fiel da Artilharia da mesma Fragata que, além do seu péssimo carácter, também fora repreendido asperamente depois da salva ao meio-dia de 29 de Outubro. Custaria até aqui conceber tanta maldade no coração de um homem, mas o acontecimento referido, mostra bem que há na espécie humana monstros capazes das mais horríveis acções. Virá aqui a propósito referir outra extraordinária coincidência relativa ao mesmo sucesso.” Voltemos à carta de Lisboa recebida pela mala que chegou a Macau nos inícios de Outubro de 1850, quase meio mês antes da explosão acorrer. Quando o Tenente Luís Maria Bordalo leu o que seu irmão Francisco escrevera sobre os rumores que circulavam em Lisboa, por ser muito singular o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, pois falava da notícia de uma explosão na fragata D. Maria II. Estranho quando só dois meses depois tal se veio a verificar a 3600 léguas de distância, tendo o Tenente Luís Maria Bordalo morrido na explosão. Na ilha da Taipa, junto à fortaleza, encontra-se escrito em português e chinês um memorial às vítimas da explosão da fragata D. Maria II erecto em 1851. No entanto, todas as datas em ambas as línguas, que na pedra granítica foram gravadas, estavam erradas e após terem sido emendadas muito mais tarde, não se conseguem agora ler com nitidez.