Da passividade e outras fábulas

Quando me vieram buscar não havia ninguém para me defender.
Paráfrase de Bertold Brecht

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]ez bem o novo responsável pela secção do PS em Macau em emitir um comunicado por ocasião da notícia de uma eventual candidatura de José Pereira Coutinho à Assembleia da República. Perante a real possibilidade do deputado e conselheiro alavancar alguns milhares de votos, Tiago Pereira veio à liça denunciar alguns aspectos deste processo político, cujo desenlace está longe de ser claro.
Trata-se, sublinhe-se, de um processo, ou seja, algo que vem de trás, de um passado com mais de uma década, que tem produzido efeitos contínuos e que tende agora para uma maximização de algum modo inesperada.
A verdade é que, pelo menos desde 2003, Pereira Coutinho tem vindo a contar com cada vez mais votos de pessoas com nacionalidade portuguesa, mas cujas língua, cultura e realidade social lhes dificultam o acesso aos temas da política lusitana, sejam estes do âmbito da comunidade local ou, ainda menos, nacional.
Este distanciamento ficou bem patente na qualidade da mensagem (SMS), de origem misteriosa, que insinuava uma eventual perda de nacionalidade, no caso de não se proceder ao recenseamento, e que forçou o cônsul Vítor Sereno a emitir um incontornável esclarecimento.
Só uma população totalmente ignorante dos seus direitos de cidadania nacional, da sua portugalidade, poderia engolir este tipo de esparrela e deslocar-se bovinamente ao Consulado para se recensear, como provavelmente se deslocará para votar nas eleições para o Conselho das Comunidades e para a Assembleia da República.
A comunidade portuguesa da RAEM tem sido, do ponto de vista político-eleitoral, pouco a pouco, feita refém da “bondade” expressa no passado, com a excelência da atribuição generalizada da nacionalidade portuguesa à população de Macau, perante a complacência das forças vivas presentes no terreno. O mérito de Coutinho foi ter sabido detectar uma mina de ouro eleitoral, puríssimo, sem ideologias nem interesses reais, pronta a ser rentabilizada e avançar decididamente, de picareta na mão, na sua exploração. Os resultados têm sido excelentes.
Curiosamente, enquanto Coutinho utilizou o seu método a nível local, no âmbito das eleições para o Conselho das Comunidades Portuguesas, tornando fútil o aparecimento de outros candidatos e o debate político, para o PS não veio mal ao mundo. Mas agora, que aposta mais alta se levanta, entendeu emitir um comunicado a denunciar esta bizarra situação.
Porquê só agora? Porque Pereira Coutinho poderá realmente ser eleito e isso é “um problema” (para quem)? Porque o seu método não preenche os mínimos requisitos éticos, quando em causa está a Assembleia da República, mas não faz mal quando se trata do Conselho das Comunidades?
Tiago Pereira resolveu emitir um comunicado. Muito bem. Em muitas das suas passagens, digamos que me tira palavras da boca ou ideias dos meus textos. É, portanto, fácil de perceber que concordo com o seu conteúdo. Há uns meses, José Rocha Dinis, também com responsabilidades no PS local, publicara um artigo em que se interrogava sobre o assunto. Muito bem.
Mais vale tarde do que nunca. Não sei é se vêm a tempo de alguma coisa, que a coisa tem as suas raízes na era das fábulas. É que, como o mesmo Rocha Dinis prognosticou em 2003, antes das eleições para o CCP, estes jogos estão há muito viciados. E, desde então, perante a complacência e a passividade geral ou quase.

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