O esguicho

[dropcap]O[/dropcap] esguichar, ou a ejaculação de quem tem vulva, tem sido objecto de grande interesse. Não é por acaso que a procura por estes conceitos tem aumentado de ano para ano em sites de pornografia, sobretudo por mulheres. Isto é provavelmente sintomático da dúvida que teima em insistir. Será que existe? O que é que é? Como se identifica? Certamente que existem mulheres que ejaculam porque têm pénis. E essa ejaculação não deixa mistério algum por desvendar. A ejaculação da vulva, por outro lado, não está tão bem explicada.

Certas vulvas vêem acontecer uma espécie de ejaculação, especialmente depois do orgasmo. Estima-se que isso pode acontecer em 10 por cento a 50 por cento das mulheres. Costumam descrevê-la como um libertar de líquido que pode molhar a superfície de contacto de forma mais ou menos intensa. Há quem o descreva como um esguicho (squirt), com alguma pressão, ou uma fonte, até 150 ml de líquido. A revisão histórica parece mostrar que há 2000 anos já se escrevia sobre esta possibilidade, tanto no ocidente como no oriente.

Em textos taoistas já se falava no poder libertador e regenerador da ejaculação da vulva.
A investigação aponta para várias teorias do que realmente se passa. Há quem diga que este esguicho é só urina – como um estudo mostrou que a bexiga estava vazia depois do orgasmo – ou que pode ser confundida com incontinência do coito, quando há perda de urina durante o sexo. Esta possibilidade, contudo, recebeu muita contestação e retaliação de quem esguicha. Não podia ser só isso. Uma análise mais cuidada mostrou que o liquido poderá ter uma percentagem de urina, sim, mas em pouquíssima quantidade. Na verdade, este líquido também terá quantidades variáveis de PSA, uma proteína comummente encontrada no sémen de quem tem pénis. Há mulheres que podem ter tecido de próstata na parede da frente da vagina que justifique a segregação desta proteína pela uretra. Chamam-se glândulas de Skene e nem toda a gente as tem.

Contudo, no imaginário contemporâneo do sexo, colocou-se o ejacular da vulva num pedestal. Consideram-na numa espécie de meta última para provar a capacidade de sentir prazer e proporcionar prazer – como se todas as pessoas tivessem a mesma propensão para fazê-lo. Só que ao mesmo tempo, para as vulvas ejaculadoras, há vergonha e desconforto por todo o aparato inesperado de molhar tudo à volta. Enquanto que algumas pessoas se sentem empoderadas por ejacular e fazer ejacular, outras enchem-se de complexos.

Isto tem chegado a um ponto que a indústria pornográfica tem procurado actrizes que consigam retratar o esguicho em filme. Há quem se veja forçada a encontrar formas criativas de compensar a dificuldade de ejacular com obrigatoriedade, o que torna o momento muito artificial e pouco fidedigno. Ao mesmo tempo, visto que é um suposto líquido com urina, os legisladores temem que se equipare com o urinar. Urinar, em contexto pornográfico já é demasiado “perverso”. Há países, como o Reino Unido, que censuram a ejaculação da vulva em vídeo por causa disso.

Ainda que a ejaculação da vulva traga uma conversa de milénios, só agora é que se renovou um interesse mais científico e popular sobre o tema. Como qualquer objecto sexual está envolto em discursos de libertação e vergonha que levam ao dualismo nosso conhecido do sexo. Ora é a prova máxima da lógica competitiva do sexo, ora mais uma forma de repressão e desconforto com o outro. Mas como tantas outras coisas no sexo, não há nada mais saudável do que explorar estas particularidades do corpo, individualmente e em conjunto, para a normalização da sensação de prazer, intimidade e entrega.

6 Out 2020

Não ponham gelados na vagina

[dropcap]N[/dropcap]ão encontro quem confirme que colocar gelados na vagina é um método eficaz para se refrescar num dia de calor, mas tenho visto muitas fontes a pedirem às vaginas que evitem encontros com natas geladas. Claro que com estes avisos vem um mar de explicações, por pessoas de grande autoridade no tema, reforçando que a ideia é péssima: e é. Os gelados têm açúcar, têm corantes, têm tanta coisa que destroem a fantástica homeostasia da saúde da vagina, com o seu pH e flora perfeitos.

De onde virá tamanha parvoíce? Da desinformação ou de falhas graves de lógica? Comer um gelado faz-nos sentir mais refrescados, por isso, porque não experimentar inserir este pedaço de refresco em outro lugar?

Não sei. A desinformação já é amplamente discutida desde 2016, quando um suposto candidato a presidente conseguiu chegar ao cargo presidencial. Tudo com a ajuda de notícias falsas que alimentavam câmaras de ressonância opinativa – onde aquilo em que se acreditava era mantido, repetido e disseminado. Em tempos de covid-19 tem-se visto por aí muita informação falsa que se faz passar por informação legitima de como mitigar esta pandemia. Até o dirigente da ONU já veio alertar que o problema não é só de um vírus, é o da infodemia de desinformação.

Achar que colocar gelados na vagina pode refrescar ou achar que consumir desinfectante é uma forma eficaz de se proteger do coronavírus resultam de processos bastante semelhantes. A literatura é vasta no estudo da desinformação e na probabilidade em alguém acreditar e partilhar conteúdos falsos. A maior parte deles estuda o perfil das pessoas, se são mais liberais ou conservadores, educados, novos ou velhos e presença de alguns traços de personalidade. A resposta não é simples. Não há um perfil concreto, mas a investigação tem mostrado que a educação pode não influenciar, e que a ideologia política pode ajudar se combinada com outras características. Outros teóricos têm olhado para a forma como o descontentamento no mundo tem fomentado a desconfiança nas instituições e na ciência. Daí vem a dificuldade em olhar para informação de forma crítica, porque resulta num natural alinhamento de crenças já pré-existentes, agora reforçadas.

Eu diria até, antes das redes sociais e das ideias parvas, a desinformação começou logo no sexo. Tanto secretismo e tabu deu azo a mitos ao longo dos tempos. Se as mulheres menstruadas entrassem numa adega estragavam o vinho, é um exemplo. A ciência provou-se útil para desmistificar estas crenças, que são parvas, claro. A ciência tornou-se num recurso importante para perceber o que é real e não é, uma bussola que nos orienta. Mas com isso veio outro perigo: a ciência como único mecanismo capaz de clarificar a realidade, deslegitimando os corpos da sua própria vivência. Temos que combater a desinformação sem nunca esquecer que os espaços de diálogo, discussão, partilha críticos continuam a ser necessários. Sem dogmas ou moralismos.

Injectar desinfectante é uma tontice e é extremamente perigoso. Numa altura de pandemia em que há dúvidas, e uma ciência que vai evoluindo na sua imperfeição de perceber umas coisas e ainda não perceber outras, viu-se aqui um terreno fértil para ideias falsas e teorias da conspiração. São precisas soluções consertadas para repudiar esta tendência crescente de acreditar em que tudo o que se diz nas redes sociais nossas conhecidas. São também necessárias formas democráticas de participação no encontro entre a ciência e o nosso dia-a-dia, seja para lidar com uma pandemia, ou para lidar com a nossa sexualidade. De qualquer modo, não coloquem gelados na vagina.

27 Mai 2020

14 Orgasmos

[dropcap]A[/dropcap]s formas como as vaginas podem atingir o orgasmo são das questões mais discutidas nas revistas cor-de-rosa. Na pornografia continua a ser mal representada, na educação sexual continua a não ser explicada, e ninguém parece insistir numa conversa bem-informada de orgasmos, e das vaginas, em particular.

Acontece que os orgasmos para os detentores de pénis são bem mais alcançáveis do que para os quem têm vaginas. Enquanto que a penetração é o caminho preferencial para o orgasmo do pénis, o mesmo não se aplica para as vaginas. A hegemonia cultural do sexo obcecado com a penetração é problemática porque também contribui para as desigualdades no prazer. Ao contrário do que as revistas cor-de-rosa sugerem – a heteronormatividade da penetração não traz, necessariamente, o orgasmo. Ele não vai acontecer só porque ainda não se achou a posição correcta. Na verdade, a penetração é só uma entre catorze formas possíveis para chegar ao orgasmo e as nossas crenças contemporâneas limitam esta descoberta. Parece que nos diz que o prazer do orgasmo é um direito para certos corpos e não para outros, e os outros treze tipos de orgasmos permanecem invisíveis. Há vaginas que se resignaram a estas falsas limitações porque nunca se aperceberam deste cardápio tão variado.

Tudo começa no clítoris, o único órgão no corpo humano que se dedica exclusivamente ao prazer. Um órgão muito maior do que o botãozinho que se consegue observar pela vulva. O seu formato assemelha-se a um meio arco interior, onde só uma pequena parte é que se encontra à descoberta. Para a teoria do orgasmo é importante perceber que não existem dicotomias claras entre orgasmos clitorianos e todos os outros. O clítoris pode ser estimulado através da fricção da sua parte descoberta e não só (o mito do ponto G existe porque há certos tipos de penetração que o conseguem envolver). Depois há o corpo e as suas partes erotizadas que ajudam neste processo. Há quem tenha tido um orgasmo pelos mamilos, pela boca ou pelo ânus. Há quem até se venha com o poder da mente. O que só prova que o orgasmo precisa de corpo, mas também precisa de estados mentais particulares para se alcançar. Se, durante uma actividade sexualizada, se estiver a pensar no que é preciso fazer no dia seguinte, não há dica, posição, ou estimulação que salve o orgasmo. O sexo é tão complexo quanto as suas muitas camadas de (des)entendimento. Os factores facilitadores para as vaginas se virem é tanto sociocultural como corporal. A obsessão com corpos magros, bonitos ou perfeitos, complicam o estado de disponibilidade que é necessária para o prazer. Para se ter um orgasmo é preciso sentir-se merecedor de um. É preciso sentir o conforto do corpo que se apresenta nu a outros e aceitar que também é uma fonte de desejo – independentemente das estórias que se ouvem e da repressão sexual que ainda hoje se sente.

A conclusão que existe um menu de catorze orgasmos por onde escolher (apesar de alguns deles também se aplicarem ao pénis) foi feita pela Lucy-Anne Holmes, no seu recente livro Don’t hold my head down. Não sou grande crente de que todas as vaginas consigam concretizar todos estes tipos. Para cada vagina será necessário explorar as suas formas de conforto e expressão. Pelo menos é um bom número para convencê-las que a exploração vale a pena. São catorze formas que incentivam a masturbação, a penetração, o toque de boca, de mãos e de todo o corpo. Discutir o orgasmo torna-o numa possibilidade real de auto- e alter- descoberta no sexo – que também põe em causa a visão orgasmo-cêntrica na partilha de intimidades, quando ainda é causa para pressão na sua performance. O orgasmo pode não ser o mais importante no sexo, mas para chegar aí precisa que todos os genitais consigam ter acesso a ele de igual forma.

22 Jan 2020

Vagina de superpoderes

[dropcap]A[/dropcap]inda se fala pouco da vagina sem se corar um pouco, ou da vulva, porque são muitas vezes confundidas. Muito menos falar de uma vagina com superpoderes, daqueles que são super porque ainda nos são extraordinários. Em mundos paralelos pessoas detentoras de vaginas seriam veneradas como entidades maravilhosas de feitos maravilhosos, mundos paralelos que deixam para trás a mundanidade com que se encara a vagina hoje em dia. O primeiro erro é assumir que a vagina prevê a feminilidade – a vagina é tão mais inclusiva do que isso; e consegue concretizar coisas magníficas. Juro.

A vagina é só uma parte, a vulva é outra. Os elementos que compõem os órgãos internos e externos dos genitais foram cuidadosamente pensados para a procriação, o prazer e a necessidade última de urinar (porque a uretra também faz parte da vulva). Tantas coisas maravilhosas vêm destes genitais. Durante o sexo estes elementos transformam-se, o clítoris enche-se, incha e disponibiliza-se para o orgasmo, a lubrificação natural é abundante, e se não for, pode-se sempre utilizar uma ajuda extra. O potencial que esta fisionomia oferece pode ainda ser trabalhada – com a prática do pompoarismo que trabalha os músculos pélvicos para maior prazer e bem-estar (que não é só para quem quer atirar bolas de ping-pong por este canal do sexo, mas se quiserem, está tudo bem). O parto é a prova derradeira de que a vagina tem poderes fora deste mundo, é flexível e passível de transformações. Poderes que tomamos como garantidos, mas que precisam das suas celebrações e, quiçá, de investimento. Há imensos partos a acontecer neste momento de pessoas detentoras de vaginas que não sabem (se calhar sabem, mas nunca interiorizaram) o potencial elástico da vagina e do seu olhar atento para todo o processo. A sincronização é perfeita – confiar nas vaginas, elas sabem muito bem o que estão a fazer. Ao contrário do que a cultura popular assume, as vaginas são muito mais cooperantes no que toca a parir.

A hiper-higienização da vagina é outra tentativa de descredibilizá-la como não capaz de lidar com os seus problemas. A indústria dos produtos íntimos bem que tem utilizado a heurística de que o suposto estado natural da vagina é sem cheiro, sem muco, sem nada a acontecer-lhe. Frequentemente é negligenciado o sistema de autolimpeza que impulsiona várias dinâmicas de corrimentos. Estes movimentos são muitas vezes incompreendidos. Vive-se num contexto que tem perpetuado a ideia de que tudo o que é confusão e micróbios são maléficos. Assumimos que para o estado de saúde individual e global é necessário exterminá-los a todos, na vagina incluída. Só que cometer genocídio bacteriológico na vagina é desaconselhado para um estado vaginal saudável. A vagina desprovida de micróbios de boa espécie permite que se desenvolvam os fungos da pior espécie (como a toma de antibióticos parece despoletar). Aí é que aparecem os corrimentos menos desejáveis, comichões em partes chatas, e outros sintomas de uma candidíase. A vagina raramente consegue lidar com este caos sozinha (vai necessitar da ajuda de outros sistemas imunológicos).

Mas o superpoder de comunicar o seu estado de saúde só funciona se compreendermos estes maravilhosos ciclos e dinâmicas pelos quais as vaginas passam. Mais importante ainda – se entendermos o superpoder da sua homeostasia.

A vagina é parte de um complexo sistema fisiológico que afecta o bem-estar de quem a tem de várias formas. Perceber os seus superpoderes é só um caminho para maior consciência do corpo e maior compreensão da sua saúde. Parece mentira, mas a vagina não só é super-competente a lidar com as transformações do mundo, como é super-poderosa a contribuir para a diversidade do mundo. Diversidades no prazer, no bem-estar, e nas suas múltiplas formas de existir.

27 Nov 2019

Gino-fobia

[dropcap]U[/dropcap]ma tentativa falhada de neologismo, ou talvez nem tanto.
Estou na sala de espera do hospital, à espera de uma consulta. Estou à espera há imensas horas, porque aconteceu eu ter uma vida e atrasar-me. Se calhar atrasei-me de propósito. O que interessa é que puseram-me no final da fila e agora tenho, quantas, uma dezena de vaginas à minha frente? Não sei, estou à espera há duas horas para a minha ser ‘inspeccionada’ ou verificada, nem sei que verbo é o mais adequado. Não sei porque é que as pessoas à minha volta têm um ar tão relaxado – serei só eu a irradiar tensão e desconforto?

Quem é que no seu perfeito juízo quer tirar as cuecas, deitar-se de costas, abrir as pernas e deixar um estranho mexer-lhe nas parte íntimas? Mesmo que seja um estranho de bata branca, continua a ser um estranho. A verdade que esta é a segunda vez na minha vida que estou numa sala de espera para ver um ginecologista. A primeira foi há dez anos atrás e a coisa correu muito mal. Prometi a mim mesma que não voltaria. O raio da Gineco era bruta como tudo, e por isso acho que… traumatizei. Daí o pobre neologismo no título, que, na verdade, quer dizer ‘fobia de mulheres’. Não é bem o caso, tenho é medo da Ginecologista.
Esta não é a minha história, tenho outra(s). Mas o medo não é incomum: pessoas detentoras de vaginas que tomam calmantes, pessoas que têm que respirar fundo e outras que estão absolutamente tranquilas com toda a experiência. Há imensos factores que podem moldar esta ida – extremamente importante à saúde feminina – à Gineco. Primeiro, a relação paciente e profissional de saúde é uma relação que pode ser complicada. Uma das razões é que nós temos um corpo que o sentimos, mas o outro é que percebe mais sobre o nosso corpo, apesar de não o sentir. Digamos que é uma experiência muito pouco participativa.

Há quem tenha problemas com essa dinâmica e há outros que não. O cerne da questão é que temos que ter a sorte em arranjar um bom médico que nos ouça com atenção – daí as pessoas detentoras de vaginas procurarem recomendações. Segundo, continuamos a anos luz de perceber bem a saúde feminina, aqui no reino do conhecimento diário e mundano. Há coisas do conhecimento técnico que não passam para o reino dos comuns mortais. Vivemos com a sombra do cancro que nos assola frequentemente – e por isso a insistência em campanhas de sensibilização para se tomarem medidas e rastreios como mamografias e citologias. Mas há tantas outras condições que podiam ser mais discutidas. Como por exemplo HPV (e as suas verrugas vulvares), herpes genital, cândida, vaginites e vaginoses.

Ir ao médico ginecologista regularmente é extremamente importante porque o nosso corpo detentor de vagina – cíclico – passa por muitas transformações e desafios ao longo do tempo. Mas para quem tem medo de ir, há vários dilemas que se criam. O que é que é melhor? Eu não encarar a condição da minha vagina ou submeter-me a uma carga de nervos aterrorizadora? Parece uma decisão simples, mas percebo perfeitamente que não seja.

Acho que o primeiro passo é compreender este terror. Há imensa gente que tem medo de ir ao dentista. Mas por alguma razão, fala-se mais disso do que do medo da Gineco. Uma pesquisa rápida em bases de dados em artigos científicos mostra-me que há mais literatura desenvolvida sobre o medo do dentista, do que o medo do Ginecologista – que sugeriu zero resultados. O medo do urologista também sugeriu zero resultados – apesar de ser a especialidade mais odiada pelos homens. Parece-me bastante natural que estas idas a especialistas do órgão sexual reproductor não sejam fáceis pelo simplesmente facto de já ser difícil falar sobre o sexo, educação sexual, direitos sexuais e reprodutivos no espaço público. Tenho cá para mim que talvez deva ser um tópico mais discutido, se não for na academia, que seja entre amigos ou com profissionais de saúde. A ‘ginecologio-fobia’ será real?

22 Nov 2018

Volta ao Mundo à Saúde Reprodutiva

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á discuti extensivamente como a saúde feminina deve ser divulgada e discutida, e de como existem variações nacionais (às vezes até regionais!) na forma como as mulheres podem ter (ou não) acesso a certos produtos, medicamentos ou serviços. Parece-me que, se já no nosso local de residência habitual pode tornar-se um pesadelo encontrar certas atenções que a nossa vagina pode necessitar, imaginem no estrangeiro.

Nós somos mulheres emancipadas, senhoras dos nossos narizes, e corremos mundo à procura de emprego, bem-estar, ou simplesmente divertimento. Mas num mundo de desigualdades de oportunidades e de direitos, a saúde reprodutiva feminina nem sempre é um direito ou não é de fácil acesso, na generalidade. Num mundo globalizado esta é informação útil às mulheres que precisam de ter acesso a pílulas contraceptivas, pílulas do dia seguinte, de um(a) ginecologista, de um antifúngico para aquela vaginite chata e persistente, em qualquer ponto do globo. Com isto em mente, nasceu o projecto ‘gynopedia’, uma wikipedia online da vagina e das questões femininas em geral, para quem corre mundo e precisa de arranjar soluções para certos desafios particulares. Assim saberás que na China pode ser difícil comprar um tampão, mas que uma pílula do dia seguinte não precisa de receita médica, e é facilmente adquirida em qualquer farmácia. Até oferecem uma tradução para mandarim  de como fazer o pedido. E esta lógica aplica-se às outras páginas de outros países ou cidades, não de tantos quanto se gostaria, porque que ainda se esperam novas colaborações – de pessoas como tu! especialista na forma como se vive a saúde reprodutiva no teu local de residência – para completar a enciclopédia dos assuntos femininos globais.  Este é um projecto/plataforma ainda em estado muitíssimo embrionário mas acho que merece toda e qualquer atenção – entendam-no como um guia turístico para os assuntos femininos e reprodutivos.

No mundo ocidental, o tal que é supostamente democrático e desenvolvido, dissemina-se a representação de que é lá que se faz tudo e muito bem, porque de bem verdade que é lá que a tecnologia de ponta está à disposição. Mas existem sempre transformações e mutações inesperadas. O progresso nem sempre tem um caminho ascendente, às vezes tem uns percalços e cai a pique. A Polónia é um exemplo deste declínio porque, entre outras acções, inutilizaram a prática de educação sexual nas escolas e tornaram o aborto ilegal. Parece que os EUA estão a ir por um caminho tortuoso também, vendo recuar certas liberdades sexuais e de reprodução por outras mais arcaicas. O que este projecto colaborativo oferece é uma possibilidade de nos mantermos sempre informadas acerca de certos progressos, mas de forma mais preocupante, de certos retrocessos também. Acho que estou entusiasmada com a possibilidade saber onde procurar caso necessite de uma pílula do dia seguinte quando estiver de férias no Brasil, mas também porque facilita ter esta informação organizada e de fácil acesso, para uma perspectiva de como o mundo vai e como é que a saúde reprodutiva é tratada e regulamentada pelo globo. E porque é que esta consciencialização é importante? Porque é preciso um movimento de descoberta e de união, que não servirá para o perpetuar um movimento à la globalização neo-liberal, mas para possibilitar a compreensão que apesar de existirem vários feminismos e várias formas de vivermos a feminilidade, o direito a uma saúde reprodutiva plena deveria ser um direito universal. Infelizmente o direito à nossa intimidade e ao controlo do nosso corpo não é um dado adquirido, em nenhum dos hemisférios (perdoem-se o pessimismo ocidental) mas vale sempre a pena contribuir para a discussão e divulgação do que são corpos – e vaginas – felizes.

18 Jul 2018

Velha Vagina

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]amos falar sobre a velhice, sobre ser-se velho e ser-se mulher: quando a vagina sofre de securas, quando os afrontamentos são constantes, quando a menstruação pára de aparecer mensalmente. O envelhecimento da nossa sexualidade não é de fácil compreensão porque está envolta em muitas falsas concepções e expectativas. Ora porque os velhinhos não são sexuais, ora são desinteressados, ora são ‘xéxés’ de todo.

A menopausa durante muito tempo esteve sob o paradigma médico como uma ‘doença’, uma falha grave dos órgãos reprodutores, e não como um processo natural de desenvolvimento. Ora isto traz alguns problemas à partida: se há uma história que lida com a velhice de forma patológica, que esperança temos nós de percebê-la de outra forma? O que nos têm tentado convencer é que a menopausa pode ser ‘curada’ ou ‘revertida’, nomeadamente, com tratamentos hormonais. Estes tiveram o seu pico nos anos 70 (pelo menos nos Estados Unidos), e a sua utilização prolongou-se até os anos 90, mesmo que trouxessem riscos (há quem diga altos) de acidentes cardiovasculares. Hoje em dia, apesar de não ser um tratamento popular, a retórica continua a mesma, o que quero dizer com isto: ainda se tenta ‘curar’ a menopausa com tratamentos. O que não é descabido de todo porque de facto há alterações no corpo da mulher que são extremamente difíceis de gerir. Recomenda-se, contudo, cautela e tacto, para não perpetuar a noção de que a sexualidade feminina saudável deve ser equivalente a uma vagina jovem e roliça – porque isso só faz com que o corpo envelhecido seja visto como não-saudável, e doente.

Claro que o cerne da questão está na visão heteronormativa e clássica do sexo, i. e., de que a penetração pénis-vagina é a única combinação possível (e digna) de sexualidade. De bem verdade que uma boa velha vagina pode sofrer alterações de forma a que penetração vaginal se torne mais dolorosa. Mas não limita a imaginação de criar outras possibilidades de sexualidade das quais os nossos corpos e as nossas mentes se possam sentir confortáveis. O que frequentemente acontece é que nós ficamos tão presos à ideia de que outras formas de sexualidade não são sexo de verdade, que a visão distorcida da velha (doente) vagina é, por vezes e infelizmente, inevitável. Espero que estejamos todos de acordo que são necessários mecanismos sociais para desfazer esta estupidez. Porque a velhice, essa sim é inevitável, agora como escolhemos vivê-la é que depende totalmente de nós – se soubermos que existem outras possibilidades.

Os media são importantes nesta dinâmica, por exemplo: há uma deliciosa série norte-americana com a septuagenária Lily Tomlin e a octogenária Jane Fonda que tenta fazer isso mesmo, ao explorar o mundo sexual na terceira idade. Seja porque são necessários produtos sexuais para a mulher madura, como lubrificantes adequados ou vibradores, ou porque explora a possibilidade de ‘recomeçar’ a vida íntima numa idade avançada.

Mas falar da sexualidade na velhice (e aos desafios é eles associados) sem falar da obsessão social pela juventude é descontextualizar por completo o problema. Idadismo – neologismo que nem todos os dicionários reconhecem – preconceito que tem como base a idade. Parece que no mundo ocidental andamos afectados com a tendência de julgar as velhas vaginas e os velhos pénis, na generalidade, como incompetentes. Ora, num mundo de desenvolvimento tecnocientífico, que tem aumentado a esperança média de vida, e com uma clara tendência de envelhecimento demográfico, urge uma nova visão sobre a velhice, e já agora, sobre o seu sexo.

6 Jun 2018