Uma ética para naúfragos

30/04/17

[dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]deias que valem ouro, que quebram o ciclo do mimetismo, do qual estamos reféns. Como a que sustenta o plot do filme Arrival, de Denis Villeneuve, o mais interessante filme de ficção cientifica da última década: a soma que não dá resto zero.

Tentemos explicá-la. Comecemos por definir que um jogador de somas a zero é alguém comprometido até ao tutano com a tese maniqueísta de que em todas as situações da vida só há duas possibilidades: ganhar ou perder, não existindo uma terceira hipótese.

Na maior parte dos desportos é assim e a dinâmica político-militar da história do mundo pautou-se pelas somas a zero. Até Hiroshima, a guerra era um jogo de somas a zero, pois o estado que perdia cedia territórios ou ficava sob tutela, sujeito à “ganância” do vencedor.

A ameaça nuclear mudou tudo, é um jogo em que todos perdem. E toda a diplomacia democrática valida o princípio de que vale a pena fazer concessões, (o que um jogador de somas a zero consideraria uma derrota) – estabelecem-se assim compromissos estáveis, em vez de soluções insidiosas e finais.

Ao tentar uma ilustração do conceito da soma que não dá zeros (explicitamente referido num diálogo) o filme é pertinentíssimo na actual contingência político-militar.

Uma pequena sinopse: uma frota de discos voadores chega à terra, posiciona-se em lugares estratégicos do planeta – mas por que não agem? Por todo o lado se procuram intérpretes, cada potência reage da sua maneira. O filme segue o que se passa do lado americano. E aí, à beira de ser ordenada a nível global uma agressão aos alienígenas, os dois cientistas lá decifram a linguagem e as intenções daqueles.

Os alienígenas afinal só trazem uma mensagem. Propõem uma ética para náufragos: a humanidade só sobreviverá se romper com a lógica da soma a zero e os homens interiorizarem, a) só unidos produzirão vantagens, b) só pela generosidade o conhecimento se esclarece. Dizem os alienígenas com as mãos em forma de estrela: abandonar o orgulho da força e de se «querer ter mais razão» é a via, só pelo «impoder» nos salvamos.   

Sem ser militante de nada, não me parece uma má ideia.

01/05/17

Para que serve afinal a arte? Recordemos Bruno Munari, o que ele contava sobre o comportamento das limalhas de ferro quando sensibilizadas por uma vibração sonora:

«Use-se uma chapa de zinco quadrada, com cerca de trinta centímetros de lado, com limalha de ferro espalhada na superfície, passe-se um arco de violino contra um dos lados da chapa, como se se tocasse violino (em lugar de passar o arco nas cordas passa-se num dos lados da chapa) e veremos que a limalha de ferro se disporá em desenhos geométricos provocados pelas vibrações sonoras. A própria matéria da textura forma imagens adensando-se ou deixando mais a descoberta o que nós consideramos o fundo».

Espantosa esta propensão da matéria se organizar em padrões anti-entrópicos se sensibilizada por uma vibração sonora. O caos foi irradiado por um sentido.

Mais espantoso ainda que a matéria inanimada se auto-organize em padrões se estimulada por uma onda sonora não aleatória é que os homens de comum não dediquem atenção ao facto de que uma especial arrumações das palavras, como na poesia, que um particular ângulo de luz numa fotografia, ou a combinação feliz de duas cores na composição de um quadro que pulsa à nossa frente, possam despertar em nós níveis diferentes da realidade e uma lente nova para a leitura do mundo, fazendo com que a nossa percepção realize uma dobra.

Portanto, respondendo à pergunta de para que é que serve a arte, penso que servirá para afastar de nós a ideia do desencanto do mundo.

Ideia que Calasso corrobora: «O mundo – já é o momento de dizê-lo – ainda que seja do desagrado de muita gente – não tem a menor intenção de desencantar-se de todo, ainda que só o fosse porque, se o fizesse, cairia num extremo aborrecimento.».

Talvez e unicamente para lutarem contra o seu próprio aborrecimento, dão-nos o universo e a natureza a melhor das razões para sermos optimistas: o universo não era obrigado a ser belo e no entanto é-o. Sim, a beleza do mundo constitui mais um enigma. Um enigma que, a avaliar pelo que acontece com os fósseis, nos é favorável: a espiral nos fósseis dos búzios foi-se aperfeiçoando de era para era, o que confirma que as mulheres, no futuro, serão ainda mais bonitas.

Entretanto, não nos iludamos, apreender o belo depende do gosto, que consideramos kantianamente como a faculdade de julgar desinteressadamente um objecto ou uma representação mediante um prazer ou uma repulsa. E o gosto  adquire-se, não é um dado imediato à consciência face ao qual se reaja. Para que se entenda o que aqui se joga lembro uma história deliciosa do Picasso.

Certa vez um soldado olhou pela montra a vernissage de uma exposição de Picasso e pensou, Que bodega, vou já denunciar este gajo. E acotovelou convidados dentro, até encontrar o pintor, com a sua boina basca e o seu copito de vinho. E interpelou o pintor, Você é uma farsa, por que pinta as pessoas de frente e de perfil ao mesmo tempo, as pessoas não são assim?

O Picasso, impassível, replicou, Você tem noiva,

Tenho sim, respondeu o soldado, com muito orgulho!

Tem uma fotografia dela?

O soldado tirou da carteira uma fotografia da rapariga e mostrou-a, ufano.

Picasso olhou fixamente a fotografia, fingiu um assomo de espanto e observou:

É muito bonita… pena é ser tão pequenina!

Ou seja, o que pensamos em geral da arte e da vida depende em grande parte da convenção, dos códigos que aprendemos como particulares à sua linguagem – mas temos de os adquirir, reconhecer e aceitá-los.

O mundo não está desencantado, mas temos de aprender a reconhecê-lo.

4 Mai 2017