Rui Flores VozesDijsselbloem não fez Erasmus [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s declarações infelizes sobre os países do sul da Europa proferidas pelo presidente do Eurogrupo, Jeroen Dijsselbloem, a poucos dias da cimeira de Roma, mostram que as divisões no interior da União Europeia (UE) continuam tão vivas, agora, 60 anos após a assinatura dos Tratados de Roma, como quando a Comunidade Económica Europeia foi estabelecida. Os líderes de 27 dos 28 países da União Europeia – o Reino Unido já não faz parte da festa – acorreram a Roma, no sábado passado, para assinalar as virtudes de um projecto que levou a paz e a prosperidade à Europa por um período e a níveis nunca antes vistos. Ainda assim, diferenças, desconfianças e preconceitos continuam a marcar os povos da Europa. No caso em concreto, em que Dijsselbloem acusou os povos dos países que têm recebido apoio internacional às suas depauperadas economias, de não fazerem um esforço sério de consolidação das suas finanças, e de gastarem parte desse apoio internacional em bebida e mulheres, expressa uma visão comum entre alguns povos da Europa. Se se quiser, é como se Dijsselbloem tivesse verbalizado o que muitos europeus do norte pensam. Há uma divisão profundamente marcada entre os povos do norte da Europa e os do sul da Europa. Essa divisão norte-sul afecta muito o modo de nos vermos uns aos outros. E mesmo quando um político experiente dá uma entrevista acaba por saltar à vista. É como a parte de cima do leite-creme queimado, tão apreciado no sul da Europa. Estala com facilidade. A UE representa hoje para 27 países europeus uma conjugação de interesses, baseada em objectivos comuns, de valores idênticos e princípios semelhantes. Cooperação pacífica, respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, solidariedade são a espinha dorsal desta união. São estes valores – a par da economia de mercado – que fizeram da União o que ela é hoje: o maior mercado do mundo, onde pessoas, bens, serviços e capitais circulam livremente. Um espaço de liberdade, onde o respeito pelos direitos humanos, solidariedade e igualdade, são, não obstante algumas dificuldades de percurso, uma realidade. Apesar de tudo aquilo que a UE e os povos europeus alcançaram – e, convém sempre sublinhá-lo, não foi pouco – as diferenças culturais são ainda hoje profundas. É um facto que o programa Erasmus e a sua nova versão, o Erasmus+, tem contribuído para um certo esbatimento das diferenças. É talvez o programa da UE que mais tem feito para aproximar os diversos povos europeus. O intercâmbio de alunos por toda a Europa evidenciou o que temos em comum. Mas as divergências persistem. Sobretudo em tempos, exponenciados por actos eleitorais, em que os povos têm de escolher entre diferentes opções. A opção por um ou outro caminho leva a que as pessoas mostrem a sua verdadeira natureza – veja-se o que acontece com o discurso fácil dos populistas. É certo que no caso de Dijsselbloem a campanha eleitoral já passou e o seu partido foi um dos mais penalizados pelos eleitores holandeses. Também isso deveria tê-lo feito ver a importância da tolerância democrática. As diferenças culturais são, pois, muito difíceis de ultrapassar. Um chinês que vai estudar para os Estados Unidos, por exemplo, não deixa de ser culturalmente chinês, ainda que coma ocasionalmente no McDonald’s. Quando sai de casa para jantar vai mais frequentemente aos restaurantes chineses do que aos estabelecimentos de comida ocidental. Usa pauzinhos às refeições, vive em bairros predominantemente chineses. Algo semelhante acontece, dê-se mais um exemplo, com a comunidade portuguesa de Macau. Aqui, continue-se a generalização, uma vasta maioria de portugueses só vai a restaurantes portugueses; lê todos os dias os jornais em língua portuguesa; não perde o “jornal da Tarde” da RTPi; aplica no trabalho os valores que trouxe do outro lado do mundo e não os da comunidade de acolhimento. No caso da divisão norte-sul europeia, essas diferenças culturais têm ainda uma componente religiosa muito marcada. O norte europeu é protestante; o sul é católico. E a religião, como sabemos, imiscui-se em tudo. As diferenças não são, pois, meramente indicativas. São operativas. Formatam-nos. Nós construímos a nossa identidade por oposição aos outros. Eu sou aquilo que o outro, à minha frente, meu vizinho, não é. Os da minha tribo não fazem aquilo que os das outras fazem. Depois de a festa dos 60 anos de Roma, em que os líderes europeus voltaram a afirmar o seu empenho na unidade, o esforço principal que falta fazer para o avanço da Europa, agora formalmente a várias velocidades, é na “unidade” de que falava Donald Tusk. Essa unidade tem um nome: solidariedade. Uma solidariedade que passa por tratar as diferenças culturais não como um factor de afastamento mas de diversidade.