Crónica duma sobrevivência

Primeiro o lugar-comum: ficas isolado numa atmosfera rarificada para além das agulhas do cateter, do tétrico incómodo da máscara de oxigénio, duma áspera sensação de aquário que devagar mas inexoravelmente te desloca para a periferia da vida – vais sobrando.

E bate-te funda a perplexidade de que em 24 horas te foram roídos sessenta por cento dos pulmões – infectados.
Chegou de onde o ataque, se estavas medicado? Na primeira percepção de que algo te colocou em jogo eis-te em desvantagem, antes de tomares posição na trincheira. Uma metáfora da ligeireza com que te entregaste à vida? Metáforas de areia, reduzidas a um nó de carne patética, manejada por um reles vírus que numa ceifa rápida te fez roçar a face na lâmina da indeterminação e de quem ouves a gargalhada. Tens quarenta por cento de hipóteses, num território em que o inimigo domina.

A máscara de oxigénio incomoda-te, dias a aceitares que é tua aliada. Uma aliada que pouco te confirma. Precisarás de algo que te afaste dos números da máquina que três vezes ao dia vai à tua cabeceira ler a tua produção de oxigénio e que te desengana; aquém da resposta devida. Só aqueles malditos números importam, só eles te permitirão levantares-te, antes que paultatinamente o teu sistema biológico entre em derrocada. Tudo depende dos pulmões; tens mais de sessenta e estás na Volta a França em bicicleta. Aguentas-te? O teu diálogo passa a ser com aqueles números digitais e os seus apitos, as ondas da tensão e os valores dos diabetes, e as injecções anti-coagulantes e, com o zinco, o zinco teu amigo, mas sobretudo, com a percussão do sonar martelado por aqueles números, estamos nos Pirinéus, merda de subidas, os teus números têm de subir aos noventa.

Como evitar que ao fim de quatro, cinco, seis dias de impasse, o medo aflore? Que te sintas no intérmito, insituado em pleno deserto, sem nada para trás que te salve, inúteis os milhares de livros na estante, os versos escritos, a vaidade dos inéditos, ah, a “inteligência”, em que vácua galhofa patinam agora os milhares de artigos? Em que insuficiência te tornaste tu? Afinal o que resiste para além da borbulhagem, do imago, da caca que todos os dias produzes? Estás só, enterrado num saco de pele, recoberto por brisas e alguns escombros de palavras, enfeixado por fim num espesso saco de plástico, que te cobre inteiro com uma máscara de matéria insólita que vai engrossando com, parece-te, intenções ambíguas, suspeitas.

Não fazes balanços de vida, aí saberias que cederias à morte – a soma dos erros não te deixaria em paz.
Quando te atreves a tirar a máscara de oxigénio sabes que tens um minuto para levantares-te e ires à tomada carregar o telemóvel e o kindle. Um minuto antes de começarem as tonturas, e dessa oportunidade depende tanto. Pior, o carregador que sempre serviu para ambos dá sinais de fadiga, são horas para carregar 20 % do telemóvel, e o kindle decidiu passar para o lado das trevas. As tuas defesas baixam.

Na clínica, há resistências para receberes mais artefactos electrónicos e livros. Vais ter de te amanhar com o caderno cartonado, preto, de quadrículas, onde te apanhas a repetir variações em torno de três quatro palavras: ar, oxigénio, grainhas… Ah, de repente és um poeta concretista e só te apetece chorar!

Tens de encontrar poros no sarcófago, uma narrativa que te devolva a uma certa unidade humana, a uma presença de que te sintas parte.

Decides que a morte fica fora do tempo e que só te importa o que lateja no seu interior, no frágil tecido temporal. Só aí há algo intocável, que não pode ser invadido: o Amor. Não cederás à puta um milímetro.

Dedicas a energia a fazer no WhatsAap (nunca mexeste nessas coisas) um grupo familiar, com a tua mulher e as cinco filhas, quatro em Portugal, e netos. O que é vital é saberem que os amas e lutas por elas, e procuras todos os dias trocar mensagens animosas, contra o teu estado de espírito, fotografias com mínimas travessuras, ditos de humor, mensagens benignas – porra, amas a tua mulher e filhas, aconteça o que acontecer, o importante é elas sentirem que as amas, o resto é secundário. Depois, fechas os olhos e com a pouca carga que o carregador te permite ouves música: Debussy, Poulenc, Messiaen, tudo o que lhe sejam pássaros, a Hélène Grimaud, a tocar, Bach – Chaconne from Partita No. 2 in D minor, BWV 100, a Quarta Sinfonia do Philip Glass, o Calculus 2020, do John Zorn…( falhas tragicamente as sinfonias do Lutoslawski – adoras as sinfonias três e quatro mas era a net que ia ao ar, ou a bateria que faltava…).

Ouves a música que te expande as células e te faz abraçar o pouco grão de ar que te sustém, e é a música que, naquele momento, desesperadamente, gostarias de transmitir aos que amas, para que fossem tocados por uma parte do Belo de que fazemos parte e nos justifica a vida e sempre tão inabilmente comunicaste.

Agora o teu corpo é como uma tábua de engomar, precisa de reabrir poro a poro e de reaquirir o seu ritmo respiratório – os pulmões estão frágeis. Vais reler poetas a que deste menos atenção, poetas do ar: Guillen, Jaccottet.

Mas já estás na varanda, a apanhar sol e a ler Milosz, outro dos teus alimentos:
« O PRÉMIO / Que dia feliz./ A névoa dissipou-se cedo. Pus-me a trabalhar no jardim./ Colibris estacaram sobre a madressilva./ Nada sobre a terra que quisesse possuir,/ Ninguém sobre a terra que eu pudesse invejar./ Todo o tanto que sofri, esquecido,/ Não tinha já vergonha do homem que fui./ Não me doía o corpo./ Ao endireitar-me, vi o mar azul e as velas».

Parece que a Teresa fez uns pastéis de bacalhau; retiras-te, que te desculpem a pieguice.

1 Jul 2021