Sara

[dropcap]C[/dropcap]omeçámos desde cedo a tentar fintar o covid, num permanente jogo de escondidas em que somos sempre nós a esconder-nos, ou um jogo do apanha, como lhe chamávamos em terras da raia algarvia, em que é sempre o vírus a apanhar. E nós a fugir, fugir sempre, fugir na medida do possível.

Estávamos perto do epicentro desta propagação atroz que viria a enfiar em casa, ou nas barracas, parte muito significativa da população do planeta. Wuhan não será assim tão perto mas nas primeiras semanas de propagação em terras da China pouco se sabia sobre o inimigo que se ía instalando entre nós. Hokkaido, onde vivíamos na altura, é por acaso destino turístico particularmente atractivo para grupos alargados de viajantes chineses e ainda em Janeiro começaram a identificar-se os primeiros casos na região mais a norte do território japonês. Vivemos desde o primeiro momento com o medo desse poderoso e desconhecido inimigo, enquanto lia as piadas e comentários vagamente xenófobos que se iam produzindo sobre o assunto em terras europeias e outras, quer na imprensa, quer nas chamadas “redes sociais”.

Hokkaido é uma grande ilha, quase do tamanho de Portugal, relativamente inóspita e por isso isolada. O clima é agreste e as contingências da geografia fazem com que seja o território mais a sul do planeta onde se fazem sentir os efeitos glaciares do Ártico. Ainda que a respectiva capital (Sapporo) tenha sensivelmente a mesma latitude que a cidade francesa de Bordéus, os invernos são longos e frios, com a neve a cobrir as ruas de Outubro a Abril, meio ano com os sons e as cores amortecidas pelo manto branco que cobre permanentemente a vida na cidade. Só no fim do século XIX a população japonesa se veio instalar nesta ilha e a cidade é um exemplo dessa modernidade, com amplas ruas e avenidas, infra-estruturas pesadas para tornar a vida confortável face às agruras do clima, uma zona urbana planeada e preparada para tornar confortável a vida humana num lugar improvável. Sapporo havia de se tornar a quinta maior cidade do Japão, com quase dois milhões de pessoas e uma universidade com mais de 20 mil alunos e um extraordinário campus em pleno centro da cidade. Coincidências da vida e vontades da alma trouxeram-me a este sítio, onde vivi e trabalhei durante algum tempo.

Outras motivações trouxeram também o turismo chinês para esta ilha, este território vulcânico onde além de uma surpreendentemente confortável cidade se pode desfrutar da vastidão de magníficas paisagens naturais, de majestosas montanhas e férteis planícies, peixes e mariscos variados, abundantes e deliciosos, águas termais para repousar o corpo e a mente, fauna e flora diversificadas em terra, mar e água. São muitos, portanto, os turistas que procuram esta zona – e não é por isso surpresa que esta tivesse sido uma das primeiras e mais importantes portas de entrada do covid-19 no Japão: em meados de Fevereiro, Hokkaido era a região japonesa com mais casos de infecções, o governo regional decretou as emergências possíveis, e nós impusemo-nos o máximo auto-recolhimento: trabalho doméstico sempre que pudesse ser, compras com entrega ao domicilio e saídas reduzidas ao essencial, sempre com as devidas máscaras preventivas e evitando as concentrações humanas das estações e transportes públicos. As circunstâncias excepcionais a isso obrigavam.

Essas circunstâncias haviam de se alterar, no entanto: por motivos profissionais, mudámos para o sul do Japão no início de Abril, já a propagação do covid tinha parecido controlada e começavam a notar-se os sinais de uma segunda ronda, com o aparecimento de novos surtos, aparentemente sem ligação com os anteriores. Instalámo-nos então em Hiroshima, a cidade mártir da segunda guerra mundial, esse símbolo urbano da importância da paz, até então relativamente poupado a uma epidemia que nessa altura ja era global. Ainda assim, o número de casos aumentava, os receios eram muitos e a nossa posição continuava vulnerável neste contexto adverso. Mais uma vez, só saídas essenciais e máximo de compras com entregas ao domicílio, ainda que eu fosse obrigado a deslocar-me diariamente à bela universidade onde comecei a trabalhar, usando transportes públicos felizmente quase vazios. Quando a epidemia ameaçou aumentar a intensidade as aulas passaram a ser dadas à distância, penoso exercício sobretudo quando não se tem contacto prévio com os alunos, e só em Junho voltaria a estar numa sala de aula, quando mais de um mês tinha passado sem qualquer caso de contágio na região.

Foi então que nasceu a Sara, o motivo dos nossos cuidados extremos, das precauções máximas, do medo sistemático de que pudéssemos contaminar este fruto magnífico que tanto trabalho nos tinha dado a semear – e que nos obrigou a viver escondidos por tanto tempo, numa semi-clandestinidade facilmente suportável pela expectativa da sua chegada ao planeta, lá pelo princípio do verão, como tinha sido previsto pelos médicos, aliás com precisão matemática. A esses profissionais também devemos muito para que este inusitado acontecimento tivesse sido possível: gerar uma nova vida em contexto de adversidade máxima, quando é a morte que toma conta do planeta; abrir uma nova esperança quando se instalam o medo e a insegurança; semear o amor quando é o ódio a desconfiança que dominam as agendas quotidianas de políticas várias. A Sara está connosco desde esta semana e vamos dar-lhe mais do que tudo o que nos for possível, porque o possível é hoje muito pouco: é um mundo de competição desenfreada, com fracos espaços de solidariedade, em sistemática auto-destruição. É a esta decadente comunidade que a trazemos, num planeta cujos recursos parecemos prestes a esgotar mas cuja destruição aceleramos, ainda assim.

Temos que lhe dar muito melhor do que temos e do que somos só para lhe devolver o que já nos ofereceu nos poucos dias que passou connosco: a evidência de que tudo afinal é possível, que tudo está por aprender, que tomar conta uns dos outros é nossa obrigação primordial e que viver melhor connosco e com quem nos rodeia é o programa mínimo para uma mudança máxima.

26 Jun 2020