Tânia dos Santos Sexanálise VozesGhosting – a prática ignóbil de terminar relacionamentos Ghosting. A palavra mais proferida pelas redes socias nos últimos tempos. Todos falam dela e nem parece ter uma tradução para português. Por miúdos: o ghosting é o acto de cortar relações súbita e abruptamente com alguém, desaparecer sem rasto, nem com sucessivas tentativas de contacto. Certamente que já passaram por isso, seja como recipientes ou protagonistas. Uma estratégia progressivamente comum desde que nos virámos para o mundo das seduções e namoros online. É tão comum que já é normal. Só que isso traz problemas. O contacto online ajudou a “anonimizar” as pessoas, não as responsabilizando pelos seus actos. Quando conhecemos alguém online é provável que não haja amigos em comum, tornando muito mais fácil cortar relações sem explicação alguma, sem pressão para dar uma justificação. Empurrando o trabalho emocional de se dizer “este relacionamento já não me interessa”, ao outro, que fica a pensar que raio poderá ter acontecido. Para as pessoas mais fantasiosas o desaparecimento de alguém pode ser sinal de desgraça. Um acidente de carro e um coma induzido que pode durar 6 meses ou mais. Mas raramente é o caso. As pessoas desaparecem dos chat-rooms, deixam de responder a mensagens, bloqueiam, sem ajudar o outro assimilar: o que aconteceu? Porque é que x ou y deixou de falar comigo? Nestes casos, o trabalho emocional – que devia ser partilhado – duplica ou triplica só para um dos lados. O problema é a criatura que julga que ignorar os outros é a forma mais fácil de incutir uma mensagem: a de que não estão interessados. A falta de clareza tem consequências na auto-estima das pessoas e no seu bem-estar. Não que as pessoas precisem de tudo explicadinho do porquê ou como é que uma relação deixou de dar certo, precisam de saber que terminou. As características da comunicação digital tem aumentado esta possibilidade de evitarmos as conversas difíceis. Um escudo de proteção que serve a uma pessoa, somente. Como consequência, as pessoas deixam de querer mostrar vulnerabilidade. Começam a ter receito de se envolver se o resultado final for este. Como é que não são dignos de uma conversa onde expressamente se diga que aquela relação não vai a lado nenhum? O medo de nos pormos em situações que nos deixam desconfortáveis fala mais alto, e as tecnologias ajudam a que ninguém necessite, quiçá, de partir o coração a alguém. Assim damos um passo civilizacional contraproducente. Ensinamos as pessoas a não enfrentarem o seu trabalho emocional e a empurrarem-no para o evitamento como se fosse uma solução viável. Mas não é. Está a deteriorar a natureza das relações interpessoais para uma mecanização que anseia seguir algoritmos informáticos. Como se fossemos robots onde simplesmente se reage ao que se quer e não quer. Eu diria mais – dependendo da natureza da relação, o mesmo se pode dizer dos emails telegráficos que têm intuito de terminar relações de anos. Protegerem-se do sofrimento do outro, da sua expressão viva de desilusão, é a escolha dos fracos. E assim a comunicação digital explora esta vulnerabilidade humana de não querermos confusões emocionalmente difíceis. O futuro distópico que viverá destas estratégias deixará a nossa humanidade flutuar na espuma do que é verdadeiramente importante: a conexão, e sabermos geri-la.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasFlores de Paris [dropcap]N[/dropcap]unca peço este bolo. Há uma amiga que o escolhe sempre mas hoje, como ela não está aqui…” Completo-lhe a frase enquanto serve o seu chá. Pequenos, delicados, estranhos rituais estes, que passamos a ter na ausência de alguém para trazê-lo/a mais para perto de nós. Conversamos sobre as idas à piscina, o desamor, o negócio dos livros, doenças e solidão. Mais tarde falaremos sobre o cansaço das viagens e tudo o que pode correr mal em festivais literários. Dir-me-á para não pensar tanto em coisas que, assegura, fiz bem em deixar. Passaram alguns anos desde que me enviou essa foto que nunca esqueci: flores de Paris, de entre as quais sobressaem verónicas, dálias e hortênsias. Noutra altura, uma tarte de maçã ladeada de hortelã e manjericão a emoldurar a singeleza. Não costumo ir muitas vezes à Versailles, o que é pena, porque a sopa de cebola, o pastel de bacalhau, os bolos, e até mesmo a formalidade, são bastante prazerosos. Não fazer muitas vezes algo que nos dá gosto ajuda a preservá-lo como deveríamos. Há uma mini Versailles no hospital onde fui operada a primeira vez e há uma Versailles umas ruas abaixo de onde vivo agora. Mas na original sentei-me com a minha amiga Ana a falar da sua mãe e de bandas desenhadas. De como o pai queria aprender a cozinhar para a mulher, que era professora e cantava fado. Eu não chegaria a conhecê-la, mas naquela tarde senti que sim. Foi ali que estreitámos laços, comovidas que estávamos. Por isso, não sei como poderia ter-me encontrado com mais esta amiga noutro sítio, independentemente do jeito que desse. Há algumas coisas que notamos sempre na primeira vez: quando nos chamam pelo diminutivo, quando alguém de quem gostamos nos diz que somos bonitas (mesmo se agora já o sabemos), quando uma amiga se nos refere como tal, em voz alta, a outra pessoa. «Como é que eu podia explicar à mamã que o problema não era ela, mas a deformação que o tempo sofria na casa dela? Eu entrava na casa da mamã e o tempo tornava-se um mecanismo tosco, como se alguém o esculpisse em fisga, eu à mercê dessa fisga, eu munição contra mim mesma, a ser puxada para trás no tempo e depois atirada, desprotegida contra o presente, onde via todos os meus erros e fracassos. A casa da mamã guardava tudo o que eu não quis ser, e que ironicamente acabei por ser.» Troco mensagens com uma amiga que me diz: “Cliffhanger maravilhoso na Eliete”. Rio-me. Pergunto, citando o livro: “Não vais apagar agora, pois não, Carlota?” Responde com um “Somos todos Eliete”. Somos, mas só a Dulce pode ser a Dulce. Daí a uns dias, vamos a uma conversa na Tigre de Papel e rimos como umas perdidas enquanto trocamos bilhetinhos secretos, ela com uma carraspana de meter dó, anunciando uma morte para breve antes de abandonar a sala mais cedo. «Vou ter de comprar um medidor de tensão arterial destes, e o coração ficou esquecido nos rascunhos.» A capa do livro funde-se com o meu velho edredão laranja. É bom saber que há mais de onde vieram estes livros, estas mulheres. Há muito de Portugal, daquela coisa mesmo deliciosa e terrivelmente portuguesinha em Eliete. Na Dulce há uma gentileza que me encanta sempre. Nunca usei tanto a expressão temos de parar de encontrar-nos desta forma com alguém como com ela. Porque a encontrei quase sempre por acaso, em transportes públicos ou restaurantes de fast food. Não é todos os dias que temos um ataque de riso com alguém que nos faz sentir tanto com a sua escrita. A primeira vez que a vi, ainda não a conhecia, foi num evento com laivos de chique, trazia um vestido preto e havaianas. Sempre a rir, sem querer saber. Há uns anos, a um sábado de manhã, quando entrou e se sentou à minha frente no metro, mochila e casaco floridos, pareceu-me que era ela, a cabeleira loira inconfundível, mas achei que devia controlar-me. Os meus auscultadores só estavam a funcionar de um lado. Sorte a minha. Ele – Lembras-te do Professor Pardal? Também andava sempre com uma lâmpada. Ela – Lembro. Mas ele era magrinho. Terias de fazer uma dieta. (Risos) Eu – Riso silencioso, a tentar ser discreta, mas sem conseguir, à medida que ela se ia metendo mais e mais com ele, um beicinho a nascer-lhe. Ele – A música deve estar boa. (Para mim) Ela – Ahaha Eu – Peço desculpa. (Sem conseguir conter o riso mas a tentar, a limpar as lágrimas e a encolher os ombros) Ele – Deve ser um podcast. (Já a corar) Ela – Eu também tenho disso (Para mim, ambas a rir sem parar). Podia ser a tua imagem de marca, podias ir a todo o lado com uma lâmpada. (Para ele) Como explicar uma amizade que começa antes de que se possa saber o mínimo não-tão-indispensável sobre alguém? Ou será assim que surgem algumas das amizades mais ternas? Não saber quase nada sobre alguém, nem precisar, é o derradeiro guilty pleasure das relações modernas. Ou melhor, saber só o que importa. Levar o seu tempo, e fazê-lo olhos nos olhos. Coisas para as quais não há pressa, flores que continuam a crescer ininterruptamente, para lá dos seus vasos fotografados, num país onde nunca estive.