Politicamente correcto

[dropcap]C[/dropcap]om mais ou menos acordo sobre normas ortográficas cuja discussão prefiro evitar, mas assumindo-me – por não ter outro remédio – como pessoa relativamente aborrecida e vagamente anacrónica, mantenho profunda simpatia pela ideia de “politicamente correcto”, escreva-se lá como for, por essa tentativa de assumir que os nossos comportamentos quotidianos, as nossas escolhas, as nossas opções de vida, a forma como nos relacionamos com o trabalho e com a sociedade, a nossa linguagem, ou até o que comemos e consumimos, têm frequentemente implicações sobre as outras pessoas, sobre a vida comunitária que temos e a que podíamos ter, sobre o presente em que vivemos e o futuro a que podemos aspirar. Muito do que fazemos é da esfera da política e tem consequências sobre nós e também sobre as comunidades em que nos inserimos.

Comportarmo-nos, escolhermos, agirmos, falarmos, votarmos, em função dos nossos valores e das nossas preferências em relação ao tipo de sociedade em que queremos viver é aquilo a que gosto chamar “politicamente correcto”. Tem mais a ver com uma certa decência cívica do que com regras de etiqueta, boa educação e preceitos sociais que nos fazem aceitar, frequentemente com alguma hipocrisia, determinadas normas de linguagem e ação com as quais se harmonizam suficientemente comportamentos sociais dominantes que garantem certa harmonia entre as pessoas nas suas interações quotidianas. São coisas diferentes, portanto: as normas de etiqueta conduzem necessariamente a uma certa homogeneização que tende à eliminação do conflito, por assentarem em regras colectivamente aceites, ainda que de forma implícita; a ação politicamente correta frequentemente conduz (ou devia conduzir) ao conflito, por traduzir valores e consciências políticas individuais, com frequência divergentes e com fundamentos em diversos interesses, individuais ou de grupo, e diversas formas de entender o mundo e a sociedade. Que esse conflito fosse aceite com naturalidade e resolvido tranquilamente seria o mínimo a esperar em sociedades democráticas. Que esse diferenças sejam motivo para que supostas maiorias imponham violentamente a exclusão de comportamentos, acções ou grupos minoritários, há muito que deixou de ser aceitável em democracia. Ou pelo menos assim parecia.

Vem isto, evidentemente, a propósito de Marega, acidental ponta-de-lança da defesa dos valores democráticos na sociedade portuguesa, com os dedos do meio em riste e apontados com inequívoca clareza e determinação à turba alarve e ululante que o foi brindando com reiterados e sistemáticos insultos racistas durante um jogo de futebol. Que magnífica demonstração de correcção política, a do avançado que a seguir abandonou o relvado, deixando subitamente em claro fora de jogo companheiros de equipa, adversários, árbitros, espectadores no estádio e na televisão, enfim, quase todos nós, os que em nome de uma certa pacificação da convivência social vamos aceitando a normalização da alarvidade, do racismo e de tantas outras formas de intimidação e violência sobre quem é tido como mais fraco, seja por estar em minoria, seja por não ter acesso a formas de poder que lhes garantam a proteção necessária frente à boçalidade ou a outras formas mais ou menos evidentes de intimidação e agressão.

Os estádios de futebol têm sido zonas francas para esta selvajaria. Paga-se o bilhete e entra-se numa arena onde muito remotamente se aplica a legislação em vigor sobre o direito ao bom nome ou à proteção perante o insulto, a violência verbal e a intimidação psicológica, quando não física. Tudo faz parte da normalidade de uma tradição alegadamente desportiva e popular, generalizadamente aceite à esquerda e à direita do espectro político. As coisas ficarão mais evidentes quando se vai ao futebol com uma criança pequena, como me aconteceu quando levei o meu filho, na altura com 3 ou 4 anos, a ver um jogo de um obscuro campeonato distrital. Aquilo que seria uma oportunidade de vivenciar um suposto ritual festivo rapidamente se transformou num penoso exercício explicativo – ou evasivo – sobre variantes e nuances da língua portuguesa, ali aplicadas com profunda sabedoria e ampla variedade na agressão e intimidação de quem ouse aparecer pela frente da nossa maravilhosa equipa. Vale tudo nessas bancadas – e sabemos disso, as pessoas que vamos a estádios porque gostamos de futebol ou porque somos adeptos de um formidável clube, muito mais formidável do que qualquer outro.

Viria o árbitro da partida a registar em competente acta o ignóbil comportamento dos adeptos em questão. Fica-lhe bem a tardia atenção mas falhou no essencial, que é aplicar as regras do jogo no momento certo: interrupção imediata e derrota da equipa cujos adeptos praticaram reiterada e inequivocamente actos de agressão racista em relação a um jogador adversário, como mandam as leis. Está tudo escrito e é o mínimo que a decência impõe, por muito que façamos de conta que não se passa nada. O mesmo se aplica, de resto, aos colegas de equipa, treinadores e dirigentes do clube de Marega: lá estiveram eles, diligentes e ufanos, a tentar convencer o jogador a permanecer no rectângulo de jogo. Debalde: não houve grito ou obstáculo que demovesse da sua correcta e sábia decisão o magnífico avançado dos dedos em riste. Ficamos a dever-lhe a lição de civismo e reivindicação dos nossos direitos mais enquanto pessoas. Corremos menos riscos de que as coisas se passem da mesma forma na próxima ocasião.

E vai haver uma próxima ocasião, evidentemente. Esta esteve longe de ser a primeira, quer em Portugal quer noutras paragens. Em Inglaterra, por exemplo, esta tem sido uma temporada de recordes no que diz respeito a incidentes racistas contra jogadores. Não será tão estranho como isso, afinal. Vivemos tempos em que a alarvidade da violência racista – e machista, já agora – vai ganhando peso e representação institucional, com cada vez menor dissimulação da linguagem e dos comportamentos intimidatórios. Além de abjectos, estes actos constituem atropelos evidentes aos direitos humanos e crimes claramente definidos por lei. Vivemos tempos em que o autoritarismo e a violência sobre minorias se vêm legitimadas pelo discurso de presidentes, primeiros-ministros, deputados, presidentes de câmara, seja em Portugal, em Itália, em Inglaterra, nos Estados Unidos, na Bolívia ou no Brasil. Não pode haver tréguas, por parte dos que queremos estar do lado de cá da democracia, no combate politicamente correcto a esta recuperação do fascismo: não é com diálogo, é com o dedo do meio devidamente em riste.

21 Fev 2020

Comédia com bolinha

[dropcap]O[/dropcap] comediante Louis CK vem a Portugal no final de Maio para fazer quatro espectáculos no Maxime Comedy Club. Os bilhetes, apesar de custarem quarenta e cinco euros, esgotaram num ápice. As reacções, essas, não se fizeram esperar.

Para os poucos que não se recordam, em 2017 o New York Times publicou uma reportagem na qual cinco mulheres acusam o comediante de “conduta sexual inapropriada”, a saber e pelo que foi revelado, Louis CK tinha por hábito masturbar-se à frente de mulheres, mas “não sem lhes pedir licença primeiro”, como terá dito o próprio depois de se ver confrontado com as notícias sobre o seu comportamento.

Este é apenas mais um comportamento abusivo recorrente na indústria de entretenimento americana (e julgo que será igualmente assim, em graus variáveis, um pouco por todo o lado).

Durante décadas os menos poderosos (actores e actrizes aspirantes, sobretudo) foram as grandes vítimas destas condutas que resultam, como o próprio CK admite, de um abuso da posição de poder de quem está mais perto do topo ou mais longe do fundo da hierarquia. É um comportamento típico de filho da puta, e estes, infelizmente, não existem somente na indústria de entretenimento. Embora – e felizmente – nem toda a gente tenha sido sexualmente assediada no trabalho, muitos – e atrevo-me a dizer que uma maioria significativa – tiveram chefes ou responsáveis directos que por serem ou se terem tornado filhos da puta profissionais tornaram a vida dos seus subordinados pequenos infernos a troco de nada senão o gozo do (pequeno) poder. Aqueles que tiveram a sorte de por motivos sobrenaturais nunca se terem cruzado com um filho da puta podem ler o Discurso sobre o filho da puta, do Alberto Pimenta, e ficam a saber de que se trata, está lá tudo.

Os escândalos Harvey Weinstein e Kevin Spacey – bem como o movimento Me Too – vieram expor de forma assustadoramente clara o quão sistémicos são o abuso e assédio sexuais. O fenómeno, que nunca foi novo, não merecia a censura social de que é alvo hoje em dia. Como tantos outros: durante décadas era tido como normal um marido “disciplinar” a sua mulher.

Louis CK foi basicamente riscado do mapa da indústria. Foram-lhe cancelados contratos, distribuição de filmes, participações em séries. Confessou-se arrependido, como seria de esperar, e fez uma pequena travessia no deserto, tendo regressado aos palcos em Agosto de 2018. Os quatro espectáculos que prevê realizar em Portugal encontram-se esgotados. Como em quase tudo na vida, a doutrina acerca de Louis CK e do seu regresso à comédia divide-se. Há quem considere que ele está no direito de voltar, quem ache que o seu regresso é prematuro e quem considere que ele nunca mais devia fazer nada.

Estas posições resultam em grande parte de Louis CK não ter feito (aparentemente) nada de ilegal.

Não foi acusado, julgado e condenado. O seu comportamento é moralmente condenável mas não legalmente sancionável. E a única forma que a sociedade tem de punir um comportamento sobre o qual os tribunais não podem opinar é a censura a que pode submeter o trabalho do autor. E esta diferirá naturalmente, em termos de intensidade e duração, de pessoa para pessoa.

Não acho que ninguém merece uma proscrição vitalícia pelos actos cometidos. Mas o regresso de Louis CK ao business as usual tem o seu quê de precipitado. Como de facto estamos no domínio da subjectividade na apreciação e sancionamento dos actos do comediante, parece-me que a presença nos espectáculos de 24 e 25 de Maio diz mais de quem lá vai do que do próprio Louis CK.

10 Mai 2019