Os cobardes

 

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]erdi a conta aos textos que já escrevi sobre o assunto, mas aqui vai mais um, apesar de saber que a expressão da minha indignação é um exercício completamente inútil. Ainda assim. Há coisas que são difíceis de aceitar. O desprezo pelos mais fracos, por aqueles que não têm sequer a possibilidade de se defenderem, é uma delas.

Ng Kuok Cheong sugeriu esta semana, na Assembleia Legislativa, a criação de mecanismos de caça aos ilegais. O deputado teve uma ideia: vamos lá fazer, todos juntos, cercos aos locais onde trabalha gente sem os papéis que a lei manda. De acordo com o esquema do auto-intitulado democrata, quando houvesse a suspeita de um trabalhador ilegal em determinado sítio, convocavam-se os residentes para cercar o espaço em questão. Só depois de se garantir que dali ninguém saía ou entrava é que se comunicava o facto às autoridades. Tudo isto em nome da defesa do operariado de Macau, o grupo de pessoas que tem a sorte – a sorte grande – de ter um BIR na mão.

Não vale a pena sequer discutir a legalidade da proposta. A um ano das eleições legislativas, não espanta que comecem a surgir ideias peregrinas e, sobretudo, perigosas. Quem acompanha a retórica de alguns deputados à Assembleia Legislativa já se habituou aos disparates que por ali se dizem; daqui para a frente, há que aguentar, em dose dupla ou tripla, o registo da parvoíce. Sabemos bem que há um certo eleitorado que alinha neste tipo de pensamento porque, infelizmente, há uma certa Macau que continua com palas nos olhos que toldam a visão e outros sentidos. Ng Kuok Cheong está a fazer pela vida. Da pior maneira.

O ilustre tribuno, com anos de Assembleia Legislativa suficientes para ter decorado, várias vezes, de cima para baixo e de baixo para cima, a Lei Básica de Macau, não é um homem valente. Não propôs cercos para outros tipos de crime. Não vai encabeçar um grupo de bons e legais homens que suspeitam que, num certo quarto de hotel, vivem duas ou três miúdas obrigadas a prostituírem-se. Não vai andar atrás do alegado agiota para descobrir se, no quarto de hotel ao lado do das miúdas, está um apostador caído em desgraça que dava tudo para voltar para casa, mas perdeu tudo numa mesa de um casino.

Não, Ng Kuok Cheong não é um homem valente. Ou então há certos tipos de crimes que não o incomodam, porque não vendem. Afinal, os crimes relacionados com prostituição ou com dívidas de jogo raramente têm como vítimas residentes de Macau, com a sorte grande do BIR na mão. São crimes que não contam para efeitos eleitorais.

Ng Kuok Cheong dispara, assim, sobre quem não tem modo de se defender: aqueles que não conseguem sequer obter autorização de trabalho. São tão miseráveis que nem sequer sabem que Ng Kuok Cheong fala deles na Assembleia, porque nem sequer sabem quem é Ng Kuok Cheong. Não vieram para Macau para roubar, explorar, matar. Andam por aí nas obras, às vezes caem de andaimes e partem pernas e o coração, a hipótese de uma vida menos miserável sai cara às viúvas e aos filhos e ao resto da família que deixaram para trás. Os trabalhadores ilegais são só trabalhadores – e ilegais porque o destino não teve mais para lhes dar.

Acho muito bem que se combata o trabalho ilegal, porque resulta, a maioria das vezes, em situações de exploração. Mas o trabalho ilegal combate-se de outra forma, pelo castigo de quem, para pagar menos, emprega sem garantir as condições exigidas pela lei. O combate deve ser contra os mais fortes e não através do cerco aos mais fracos.

Escrevi há uns anos que falta a pró-democratas e Operários – os dois grupos que perdem horas de sono com a mão-de-obra importada, ilegal e legal também – a capacidade de perceber que os trabalhadores que vêm de fora só deixarão de ser uma ameaça no dia em que se garantir que têm as mesmas condições que são dadas aos locais. Só quando estes dois grupos estiverem em pé de igualdade é que um empregador deixará de despedir um residente para dar trabalho a um não-residente que, neste momento, lhe sai mais barato.

Inocência a minha. Pró-democratas e Operários sabem bem que é melhor continuar a disparar no alvo errado, naquele que não se mexe porque nem sequer sabe que está na mira. É um alvo fácil. O exercício não requer perícia e vai dando votos. Muitos votos.

28 Out 2016