Tânia dos Santos Sexanálise Vozes14 Orgasmos [dropcap]A[/dropcap]s formas como as vaginas podem atingir o orgasmo são das questões mais discutidas nas revistas cor-de-rosa. Na pornografia continua a ser mal representada, na educação sexual continua a não ser explicada, e ninguém parece insistir numa conversa bem-informada de orgasmos, e das vaginas, em particular. Acontece que os orgasmos para os detentores de pénis são bem mais alcançáveis do que para os quem têm vaginas. Enquanto que a penetração é o caminho preferencial para o orgasmo do pénis, o mesmo não se aplica para as vaginas. A hegemonia cultural do sexo obcecado com a penetração é problemática porque também contribui para as desigualdades no prazer. Ao contrário do que as revistas cor-de-rosa sugerem – a heteronormatividade da penetração não traz, necessariamente, o orgasmo. Ele não vai acontecer só porque ainda não se achou a posição correcta. Na verdade, a penetração é só uma entre catorze formas possíveis para chegar ao orgasmo e as nossas crenças contemporâneas limitam esta descoberta. Parece que nos diz que o prazer do orgasmo é um direito para certos corpos e não para outros, e os outros treze tipos de orgasmos permanecem invisíveis. Há vaginas que se resignaram a estas falsas limitações porque nunca se aperceberam deste cardápio tão variado. Tudo começa no clítoris, o único órgão no corpo humano que se dedica exclusivamente ao prazer. Um órgão muito maior do que o botãozinho que se consegue observar pela vulva. O seu formato assemelha-se a um meio arco interior, onde só uma pequena parte é que se encontra à descoberta. Para a teoria do orgasmo é importante perceber que não existem dicotomias claras entre orgasmos clitorianos e todos os outros. O clítoris pode ser estimulado através da fricção da sua parte descoberta e não só (o mito do ponto G existe porque há certos tipos de penetração que o conseguem envolver). Depois há o corpo e as suas partes erotizadas que ajudam neste processo. Há quem tenha tido um orgasmo pelos mamilos, pela boca ou pelo ânus. Há quem até se venha com o poder da mente. O que só prova que o orgasmo precisa de corpo, mas também precisa de estados mentais particulares para se alcançar. Se, durante uma actividade sexualizada, se estiver a pensar no que é preciso fazer no dia seguinte, não há dica, posição, ou estimulação que salve o orgasmo. O sexo é tão complexo quanto as suas muitas camadas de (des)entendimento. Os factores facilitadores para as vaginas se virem é tanto sociocultural como corporal. A obsessão com corpos magros, bonitos ou perfeitos, complicam o estado de disponibilidade que é necessária para o prazer. Para se ter um orgasmo é preciso sentir-se merecedor de um. É preciso sentir o conforto do corpo que se apresenta nu a outros e aceitar que também é uma fonte de desejo – independentemente das estórias que se ouvem e da repressão sexual que ainda hoje se sente. A conclusão que existe um menu de catorze orgasmos por onde escolher (apesar de alguns deles também se aplicarem ao pénis) foi feita pela Lucy-Anne Holmes, no seu recente livro Don’t hold my head down. Não sou grande crente de que todas as vaginas consigam concretizar todos estes tipos. Para cada vagina será necessário explorar as suas formas de conforto e expressão. Pelo menos é um bom número para convencê-las que a exploração vale a pena. São catorze formas que incentivam a masturbação, a penetração, o toque de boca, de mãos e de todo o corpo. Discutir o orgasmo torna-o numa possibilidade real de auto- e alter- descoberta no sexo – que também põe em causa a visão orgasmo-cêntrica na partilha de intimidades, quando ainda é causa para pressão na sua performance. O orgasmo pode não ser o mais importante no sexo, mas para chegar aí precisa que todos os genitais consigam ter acesso a ele de igual forma.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasÁcaros & Orgasmos [dropcap]G[/dropcap]eorge Steiner, no discurso de agradecimento ao honoris causa atribuído pela Universidade de Lisboa, teve este desabafo: «É possível que as humanidades nos tornem menos empáticos, que elas nos proporcionem uma enorme riqueza interior que nos torna menos capazes de reagir imediata e vigorosamente à necessidade humana. A necessidade humana é frequentemente estúpida, desordenada desprovida de beleza». (Das cinzas do silencio à palavra de fogo, Porto, Exclamação, 2018) E proferiu este juízo contra si mesmo; toda a vida defendeu que as humanidades humanizavam, ei-lo aos oitentas a pôr a hipótese contrária, embora sob ressalva: «espero estar enganado». A hipótese levantada é terrível. Talvez a frequência excessiva da arte nos amortize a sensibilidade, reféns da literatice. Quanto mais consumidores da cultura e da arte mais alheios à sorte do que está “lá fora”? Ver a beleza de uma fotografia de Sebastião Salgado afinal imuniza-nos de questionar a pobreza? Talvez o mal emerja do cruzamento de quatro coisas: uma mutação da cultura de massas, o “apagamento” da mathesis e da memória e a bomba demográfica. Quando havia um vislumbre de mathesis (a hipótese de uma ciência geral que articule os diversos horizontes do saber) confiava-se numa maior correspondência entre a sensibilidade, o conhecimento (científico ou artístico) e a moral. Hoje, alia-se à suposta falência da mathesis uma depauperação da memória e a pulverização da cultura humanística, degradada pela asfixiante auto-referencialidade das indústrias culturais – a minha filha de 15 convidou-me a ver “um filme espectacular com a Lady Gaga” e afinal era a quinta versão de A Star is Born (fraquita). Mas como ela não tem memória das outras… E lembremos como as televisões viram sobre si mesmas “as janelas para o mundo” e se saciam na circularidade auto-referencial (- fenómeno a que Eco chamava a neo-televisão). Entretanto, o conhecimento foi preterido pelo entretenimento, o qual sustém o seu foco na sociabilidade: se não vemos a última série de televisão, a peça de teatro mais badalada ou lemos os livros mais vendidos, quem somos? As indústrias culturais oferecem catálogos de “novidades”: as emboscadas e solicitações em que enredamos gratuitamente o nosso tempo. E o gosto médio vai baixando de nível porque, de sempre, a qualidade que emerge de uma “sensibilidade prospectora” não pode ser a de todos, nem muito menos de massas. E aquela implica trabalho, erudição, distância e risco. Se hoje se confunde na democracia (do gosto) a hierarquia da popularidade com a do prestígio, foi a forma do sistema desviar para as performances económicas os critérios que deveriam assentar na qualidade formal e orgânica das obras. Porém, apesar de José Rodrigues dos Santos vender como pãezinhos, é um lixo, não é Lobo Antunes: diferença facilmente verificável no modo como um e outro trabalham a linguagem, os seus supostos materiais. Recordemos uma maravilhosa formulação do maliano Tierno Bokar, segundo o seu discípulo Hampaté Bâ: “A escrita é uma coisa e o saber outra. A escrita é a fotografia do saber mas não o saber em si. O saber é uma luz que existe no homem.” Bokar prevenia, como Platão, contra o fetichismo da letra impressa, mas o seu aviso ajusta-se hoje igualmente aos estereótipos das indústrias culturais e até ao nó cego cognitivo que impera nas redes sociais. Ao mesmo tempo, o mercado oferece um índice de satisfação imediata que se entrosa num tipo de cultura remix (Rui Chafes), de horizontalidades, onde tudo se equivale e rapidamente fica obsoleto. Hoje, quando a opinião de um especialista se equivale à de um ignaro nas redes sociais estamos diante de letras mortas, das fotografias do saber. Contudo, o gosto da maioria, ilusoriamente reforça-se com a explosão demográfica; à maioria, que tem sempre um anseio pela metade, um querer pela metade, é indiferente que seja absolutamente distinto saber como funciona a máquina de lavar roupa ou como apertar o botão. Quando estabelecemos com a cultura uma mera relação petisqueira, heterónoma, i.é, de divertimento e descarte, não se produz aí, em termos humanos, nenhum campo novo de valores e de relação. Pelo contrário, a experiência estética profunda, implica uma vulnerabilidade – nela, a nossa percepção sobre as coisas, o mundo, as relações, mudam; despertamos para um novo sentido, talvez o transe dessa luz de que fala Bokar e que pode estar obstruída ou ser desvelada. Como escreve o filósofo Byung- Chul Han: «Não podemos ver de forma diferente sem nos expormos a uma vulneração. Ver pressupõe a vulnerabilidade». Eis porque de comum vemos melhor as nossas tradições de fora delas do que no seu seio, ou percebemos finalmente certas complicações da nossa vida, mercê de um distanciamento. Do lado do entretenimento temos o Gosto (convertido em tique facebookiano), do lado da reminiscência (diria o Platão) gera-se uma flutuação das “placas continentais” que muda a nossa topografia interior. Deste lado a experiência, do outro a ilusão conectiva. E afinal, é mesmo impossível uma mathesis? Não. É propaganda da cultura de massas, para fazer cumprir o ideário hegemónico do neoliberalismo, o qual subentende uma sinonímia do sujeito ao consumidor, esquema em que o sonho e a criatividade imaginativa ou rememorativa são menorizados na medida em que se associa a juventude a uma rápida busca ansiosa que privilegia a eficiência. Daí que a noção de subjectividade se veja substituído pela de performance. Mas continua a haver outros paradigmas mais fecundos. Se abraçarmos o pensamento da complexidade, de que Edgar Morin nos abriu as portas, notamos cadeias de transmissão entre diversos saberes que se observam simultaneamente nas ciências, nas artes e na vida. Há outros caminhos. Embora tudo isto dê trabalho, e aqui se exija a educação, até para compreendermos que o trabalho que o conhecimento dá pode não só dar prazer como (um efeito lateral) até recompensar-nos. A sabedoria, meus caros, pode ser uma felicidade, já as indústrias culturais… finam-se numa lógica masturbatória: momentânea e aquém do outro.