O regresso de O Rinoceronte

08/08/2017

[dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ilene. Pisámos pela primeira vez a língua de areia que separa a lagoa do mar. Elas foram em expedição, à cata de tartarugas. Eu fiquei em decúbito dorsal sobre uma duna a reler O Inumano de Lyotard. Nas minhas costas o remanso da lagoa, às vistas o fragor do mar. E anoto: “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa (…) Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida no ‘interior’. Perde-se o tempo em busca do tempo perdido. A anamnese é o antípoda, o outro, da aceleração e da abreviação. “

Chegados da falésia que ladeia esta fimbria, alguns gorjeios aveludam o ríspido grasnido das gaivotas. Eu interrogo-me se a interioridade não será apenas a actualização duma anterioridade desmembrada. A maré enche, rebenta com ímpeto as suas ondas na rocha. Uma criança foge da água aos berros, tem um calcanhar castigado pela queimadura de um tentáculo de garrafa-azul. Leio, “Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é ao que devemos chamar pensar”. Estou certo de que tenham sentido estas minhas garatujas? Não. O sol estrela-se nas minhas costas. Persigo a disjunção, o pensar sem corpo enquanto elas perseguirão as tartarugas. Achá-lo-ei, achá-las-ão elas? A indeterminação é a pauta – embora lhes caiba (a elas) a maior propensão. Nesta latitude é mais plausível tropeçar – se em  tartarugas ou avistar-se baleias do que eu achar vaga na gávea que permite enxergar o pensamento sem corpo.

A um palmo de mim uma pequeníssima, quase invisível, aranha, suspende-se de um fio preso onde? Lamento não ter trazido a máquina para fotografar o inefável. Ao meu lado o Vítor, deitado de papo para o ar, lê o 4321 do Paul Auster, um senhor tijolo, e comenta, Este livro além de excelente exercita os músculos.

Pensamento com corpo.

10/08/2017

É impossível não sorrir quando leio no Magazine desta semana:

A selecção nacional de xadrez qualificou-se para o mundial da modalidade, a ter lugar na Índia, no próximo mês de Dezembro, fruto da conquista do “africano” da modalidade, recentemente realizado em Moçambique, que contou com a participação de dois países do continente africano (…) A organização contava com mais participantes mas por motivos financeiros e burocráticos, à última hora, os restantes desistiram da prova.

O certame foi designado Africano Zona 4.3/ Sub-16, por equipas.

Este mega evento é a primeira vez que é organizado em Moçambique e contou com juízes internacionais provenientes da Zâmbia e os restantes são de Moçambique. Com a ausência de um número considerável de países, o certame resumiu-se a dois países nomeadamente, Moçambique e Suazilândia. Foram divididos em quatro equipas, equipa A,B,C e D. A equipa “B” foi a grande vencedora da prova. Tendo a Suazilândia ficado em último lugar…

Parabéns Moçambique.

Isto faz-me lembrar o exemplo que costumo dar na primeira aula quando quero frisar o fosso que é preciso ultrapassar para dar o salto para o desenvolvimento. E então aí informo que o jornal que mais vende em Moçambique é o matutino Notícias, o único que chega a todo o país e que, para uma população de 23 milhões, vende 20 000, recordando em contraste que em 1890 os principais diários de Paris, Londres e Nova Iorque vendiam entre 90 000 a 100 000 exemplares.

Há muitos mundos no mundo, repetia a minha mãe.

11/08/2017

Pascal morreu aos trinta e nove anos… e já era, no seu tempo, uma idade avançada. Alexandre Magno e Catulo morreram aos trinta e três anos, Mozart aos trinta e seis, Chopin aos trinta e nove, Spinoza aos quarenta e cinco, Santo Tomás aos quarenta e nove, Shakespeare e Fichte aos cinquenta e dois, Descartes aos cinquenta e quatro, e Hegel com a avançadíssima idade de sessenta e um. Também o Bolano se finou aos quarenta e nove.

Face a estes dados só nos resta reconhecer que somos de uma preguiça incomensurável e que há ossos que não se liquefazem no efémero.

11/08/2017

Folheando cadernos adentro pesco um episódio caricato que se passou com o Ionesco.

O velho gnomo recebeu o telefonema de um encenador de Nova Iorque que além das palmadinhas nas costas lhe comprou os direitos para encenar O Rinoceronte, uma peça onde todas as pessoas de uma aldeia se metamorfoseiam em grandes mamíferos. A peça na altura foi lida como uma metáfora sobre a alienação ou sobre a indiferença. As interpretações variavam. E o Ionesco lá pagou um tintinho ao Cioran e a outros compinchas.

Passado dois meses recebe um novo telefonema do americano, que estava encabulado. Desembuche homem, incentivou o romeno. O nova-iorquino lá esclareceu que tivera de contratar um “negro” para reescrever a transição do segundo para o terceiro actos. Mau Maria, de que é que você fala? E o encenador confessou que fora obrigado a introduzir um telefonema em que Berenger (o protagonista) tenta em vão telefonar ao seu maior amigo, antes de concluir, Bom, eu tentei avisá-lo várias vezes que ia a casa dele, mas como não me atendeu o telefone…

Resumindo, o que deixou o Ionesco siderado, para o americano era normal que um corno de rinoceronte irrompesse da testa das personagens e que toda a aldeia se bestializasse, isso fazia parte da lógica poética, o que era impossível de acontecer era que um amigo fosse a casa de outro sem o avisar previamente. Convenção social, afinal, que derrotava  o absurdo da peça.

Seja a alienação seja a indiferença, qualquer uma das duas chaves tornam O Rinoceronte actualíssimo.

17 Ago 2017