O factor lupicínio

Um dia glorioso de sol e azul numa das mais bonitas cidades que conheço, a minha. Há cheiro a Verão, vestidos leves e disposição soalheira. As máscaras não conseguem esconder o sorriso que se adivinha pronto a soltar. Tudo do melhor no melhor dos mundos. Dia perfeito, portanto, para vos escrever sobre a solidão e a dor de cotovelo.

Não vou mentir: já não é a primeira vez nem será a última que me sirvo das palavras para tentar traduzir este fascínio que o falhanço e o perdedor tem sobre este que vos escreve. Muitas vezes nem precisei de pretexto, a coisa saiu naturalmente porque convive comigo desde que me conheço. Desta vez, porém, aproveitei a boleia de um pequeno-grande espectáculo feito por três amigos – os poetas Júlia Zuza e Viton Araújo e a cantoríssima-cumplicíssima Luanda Cozetti – e o qual se intitula, sem medo, “Dor de Cotovelo”.

O conteúdo vai buscar letras e poemas da música popular brasileira que tratam do destino de quem fica a chorar sozinho no fundo do balcão, feito sem preconceitos de gosto ou género musical – apenas o tema interessava e interessou para quem assistiu. Celebrar a dor com alegria enquanto se canta e bebe uma caipirinha é possível e desejável. Eu próprio, que acalento uns planos secretos para algo muito semelhante há alguns anos fiquei finalmente a perceber o caminho. E quando voltarem, quem puder não perca.

Só que no meio de tantos autores de canções há alguém que se agiganta de forma irremediável nestas funções. Aqui, como na vida, venceu o factor Lupicínio. O leitor desconhece o grande Lupicínio Rodrigues? O leitor faz mal mas estou aqui para ajudar.

Fiquem comigo, então. O falhanço amoroso pode ser uma coisa boa. Na maior parte das vezes, é. E não falo de lições de vida mas de oportunidades de auto-conhecimento. De reconhecimento, até. Como dizia Vinicius, «Ai de quem não rasga um coração/ Esse não vai ter perdão».

Nesse aspecto, urge conhecer Lupicínio Rodrigues. Ele é nosso cúmplice. Ele é nosso parceiro. Ele é nosso camarada de armas, o que se rende ao nosso lado e que depois da rendição continua a sonhar com a batalha. No amor, Lupicínio é um tirocínio.

As suas canções são hinos, gloriosos na sua ostentação da modéstia e sumptuosos na singeleza dos afectos: há raiva, há ciúme, há sacanice, há abandono. A força destes sentimentos em bruto abalam-nos porque crescemos a evitá-los.

Temos pudor do que nos é primevo. Lupicínio não tem pudor nem vergonha. Minto: na sua imortal Vingança, canção que fala disso mesmo, há estes versos desesperados do amante traído mas que nunca mais se irá libertar da sua traidora: “Me fazer passar essa vergonha com um companheiro / E a vergonha é a herança maior / Que meu pai me deixou”. É isso: Lupicínio é um Shakespeare dos pobres, que privado de metáforas e vocabulário, trata as coisas exactamente como elas são.

Lupicínio é dos que perde.

Há muito, muito tempo, passando por mais uma desilusão amorosa, foi quase sem surpresa que descobri a origem da expressão “dor de cotovelo”. Tem um sentido diferente daquele em que a usamos, que é o da inveja ou o do ciúme. «Dor de cotovelo» foi cunhado por Lupicínio para designar o excesso de tempo passado ao balcão do boteco, sozinho a pensar no que foi e no que podia ter sido. É o retrato infalível do tipo que fica até o bar fechar, a beber o desgosto e a segurar a cara e o coração.

Podemos encontrar algo semelhante em Sinatra, que de resto transformou este estado de vida numa arte maior. Mas Sinatra é especialista em passar-nos a sua vida (o que está a cantar), de tal forma que nos confundimos com ele.

Quando ouvimos Lupicínio estamos perante um tipo que sofre – exactamente naquele momento. E o que reconhecemos é o seu sofrimento.

O cancioneiro de Lupicínio Rodrigues é a wikipedia do falhanço. E é por isso que ele nos é tão urgente: para nos dar a possibilidade de falhar outra vez e nem sempre melhor. E isto é preciso e precioso, amigos. As lágrimas são um preço justo pelo tanto que nos ensina.

30 Jun 2021