Parabéns, Gui!

Parabéns, Guilherme. Dezoito anos. Uau. Parece que foi ontem.

No dia em que nasceste, eu e a tua mãe tínhamos ido almoçar fora. Já no fim do almoço ela começou a sentir algumas contracções mais fortes. Sabíamos que estavas perto. Não nos tínhamos apercebido de que estavas mesmo ali. Estávamos tão romanticamente embevecidos com a tua vinda que nem quisemos saber se eras menino ou menina, para desespero cromático de toda a família e amigos. Nos primeiros três meses da tua vida vestiste-te unicamente de bege.

Lembro-me da tua mãe, à porta da entrada das parturientes, na maternidade Alfredo da Costa, a acabar um corneto de chocolate entre contracções. Não se ia afinal desperdiçar um gelado por conta de um assunto que podia tranquilamente esperar quinze minutos (passadas aquelas portas a única coisa que existe é tempo). Nasceste às 19:34. Lembro-me que estava a dar um jogo do Benfica na televisão da sala de espera. Não me lembro do resultado ou com quem jogava, mas pareceu-me adequado para uma sala de espera apinhada de homens a roer as unhas e num vai-e-vem para fumar cigarros lá fora.

Vinhas minúsculo, embrulhado numa trapagem de hospital, entre as pernas da tua mãe, sobre a maca. Minúsculo e glorioso, feixe de luz prismática reflectindo todas as possibilidades do mundo. Irias ser médico, artista, lutador de MMA, nómada digital – como sói dizer-se agora – ou quiçá astronauta, como o teu pai sonhou ele próprio ser quando começou a olhar para as estrelas e a fazer perguntas sem resposta. Durante dois anos foste isso tudo.

O teu nome foi um problema, sabes? Estávamos à espera de uma menina. Chamar-te-ias Alice, como a nossa heroína do Lewis Carol e a avó da tua mãe. O facto de vires de série acoplado com mangueirinha de irrigação estragou os nossos planos. Durante quinze dias o teu nome foi Inominável Custódio Romão. Ainda pensámos registar-te assim (mentira; eu pensei, a tua mãe nunca). Os nomes masculinos pareciam-nos quase todos banais. Ou pior, associados a pessoas de quem não gostávamos nem um bocadinho. «Que tal Rogério?», perguntava a tua mãe.

«Nem pensar, conheci um Rogério que era estúpido como uma fatia de fiambre». E assim andámos até perceber que não conhecíamos nenhum Guilherme que nos tivesse deixado uma impressão negativa. E não soava de todo mal: Guilherme Custódio Romão. Fica bem numa capa, num letreiro de um filme, até na porta de um escritório.

Quando percebemos que nada do que pensámos para ti serias tu tivemos de chorar algumas noites. Alguns dias. A cada golfada de ar íamos substituindo possibilidade por realidade. Como diz um verso de um poema chinês de que gosto muito «estávamos a lavar-nos impecavelmente com lágrimas». Não tem nada a ver contigo, sabes? Nós é que nos deixámos engordar com as possibilidades que deveriam ter sido apenas tuas. Mas é inevitável. Pergunta a qualquer pai. Quer dizer, se conseguisses falar talvez o fizesses.

Tudo o que era romantismo em nós se converteu em feroz pragmatismo. Para teu bem, endurecemos. Tivemos de o fazer, sabes? Tentaram enganar-nos mil vezes quando eras mais novo. Médicos com mais ganância que escrúpulos, terapeutas que nos receitavam banhos de sal grosso, amigos e desconhecidos bem-intencionados com histórias tão encorajadoras como irrepetíveis. Tivemos de pôr um filtro de chumbo entre a realidade e o coração, ou estaríamos condenados a submergir até deixar de te ver.

Agora começa uma etapa nova na tua vida. Acabou a escola. O estado não sabe o que fazer contigo. Não és prioridade de ninguém a não ser a nossa e daqueles que aprenderam a te amar. Deixa, a gente desenrasca-se, como sempre o fizemos. Não te preocupes, filho.

24 Set 2021