Camaleão excelentíssimo

Ambíguo, heteronímico, multifacetado, David Bowie foi a figura da cultura pop que melhor interpretou a segunda metade do século XX

[dropcap style=’circle’]D[/dropcap]avid Bowie, que morreu no domingo, aos 69 anos, conjugou magistralmente talento, ‘gancho’ comercial e ambiguidade, tornando-se num dos músicos mais influentes de sempre, com um estilo ímpar que nunca deixou de reinventar. Provocador, enigmático e inovador, construiu uma das carreiras mais veneradas e imitadas da indústria do espectáculo, que o colocou no pedestal das lendas da música.

Nascido David Robert Jones, a 8 de Janeiro de 1947, no seio de uma família modesta de Brixton, um bairro popular do sul de Londres, a lenda do rock viu o primeiro sucesso chegar em 1969, com “Space Oddity”, uma música que se tornou mítica sobre a história de Major Tom, um astronauta que se perde no espaço.

Nessa altura, já tinha operado a primeira de muitas reinvenções, ao “batizar-se” David Bowie quatro anos antes, para evitar confusões com Davy Jones, vocalista dos The Monkees, banda rival dos Beatles.

Os anos 1970 viram-no dominar o panorama musical britânico e conquistar os Estados Unidos da América com uma série de álbuns de sucesso.

david_bowie_hd_wallpaper-1600x1200Bowie, que estudou budismo e mímica, traçou o caminho para vingar como uma das figuras de maior relevância durante mais de cinco décadas. Multifacetado, também foi actor, produtor discográfico e venerado como ícone de moda pela tendência para provocar por via da indumentária.

Autor de álbuns aclamados como “Heroes” (1977), “Lodger” (1979) e “Scary Monsters” (1980), o artista, radicado em Nova Iorque há anos, chegou ao topo da indústria a 06 de junho de 1972 com “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and The Spider From Mars”.

Este disco, em que relata a inverosímil história da personagem Ziggy Stardust, um extraterrestre bissexual e andrógino transformado em estrela de rock, reuniu duas das obsessões do cantor: o teatro japonês kabuki e a ficção científica. Contudo, essa excêntrica personagem foi apenas uma das muitas personalidades que adotou ao longo da carreira, como os outros “alter egos” da sua produção criativa: Aladdin Sane ou Duque Branco.

Em 1975, chegou o primeiro êxito nos Estados Unidos, com o ‘single’ “Fame”, que co-escreveu com John Lennon, e também graças ao disco “Young Americans”. Mais tarde, em 1977, chegou o minimalista “Low”, a primeira de três colaborações com Brian Eno, conhecidas como a “Trilogia de Berlim”, que entraram no top 5 britânico.

Ao lugar cimeiro da tabela musical no seu país chegou ainda com “Ashes to Ashes”, do álbum “Scary Monsters (and Super Creeps)”; colaborou com os Queen no êxito “Under Pressure” e voltou a triunfar em 1983 com “Let’s Dance”. Em 2006, anunciou um ano sabático e desde então muitos fãs choraram a prolongada ausência que deu azo a todo o tipo de rumores sobre a sua saúde.

Após anos de silêncio, David Bowie “ressuscitou” em 2013, aos 66 anos, com “The Next Day”, um disco produzido pelo veterano Tony Viscontti, o seu homem de confiança que enamorou a crítica com típicos elementos ‘bowinianos’. Um ano depois, pôs no mercado a antologia “Nothing Has Changed”, com a qual celebrou meio século de carreira.

O seu mais recente álbum foi “Blackstar”, em que surge como um ‘rocker’ ainda apostado em surpreender ao enveredar por alguma experimentação jazz, o qual foi posto à venda na passada sexta-feira, coincidindo com a data do seu 69.º aniversário. O seu 25.º álbum, surgido sob o signo de uma misteriosa estrela negra (“Blackstar”), é atravessado por baterias epilépticas, por correntes e explosões de saxofones (o primeiro instrumento de Bowie) e por uma voz de veludo que transmite ora doçura, ora inquietação em surdina.

David Bowie, que lutava há 18 meses contra um cancro, era casado desde 1992 com a modelo somali Iam, com a qual teve uma filha, Alexandria Zahra “Lexi” Jones. Tem outro filho, Duncan Jones, fruto de um primeiro casamento com Angela Bowie.

Blackstar, a última partida

O novo disco é sombrio e desafiador. Gravado ao lado de um quarteto de jazz (o Donny McCaslin Quartet), traz ecos do disco Outside, que Bowie lançou em 1995, em que conspirava com a ficção científica e o início da era digital, além de forte influência de música electrónica. Também é influenciado pelas distopias da nossa época actual – o saxofonista McCaslin disse que a faixa-título teve o Estado Islâmico como inspiração – e pelo disco mais recente do rapper Kendrick Lamar, To Pimp a Butterfly e tem uma música (“Girl Loves Me”) composta no inglês torto inventado por Anthony Burguess em Laranja Mecânica. É um disco que fala de morte de uma forma estranha e sem pessimismo, como se o cantor e compositor estivesse a preparar a forma como quer ficar conhecido.

Músicos locais lamentam morte de ídolo

bowie_aladin_sane_1000px“Uma gigante perda”
A morte do artista David Bowie, aos 69 anos, vítima de cancro, apanhou o mundo de surpresa. Depois de pulos de alegria, por parte dos seus seguidores, com o lançamento do novo álbum “Blackstar”, na semana passada, é tempo de chorar a morte do cantor.

“Estou chocado, fui apanhado completamente de surpresa. É uma perda enorme para o mundo da música, para os músicos, para o mundo”, reagiu Luís Bento, empresário e músico, residente em Macau. “Os anos 80 e 90 foram marcados pelo Bowie, nem acredito que isto aconteceu”, apontou ao HM. David Bowie era, conta, um artista de mão cheia que fez o que muitos não conseguem fazer. “Os músicos a sério são-no até morrer. Não tenho dúvida disso e Bowie é só mais um exemplo da qualidade e trabalho que sempre o distinguiu”, frisou.

Para Darrren Kopas, membro da banda local Music Boxx, esta é claramente “uma gigante perda”. “O mundo conhece o David Bowie, é uma referência para qualquer músico de pop rock. Perdemos um grande artista”, frisou.

O músico Ladislau Monteiro, mais conhecido por Zico, relembrou os tempos em que os discos do artista inundavam a casa dos pais. “Claro que David Bowie é uma influência. É um ídolo. Qualquer músico da nossa geração tem o Bowie como referência. Fico muito triste, muito triste mesmo, com esta notícia”, apontou.

“É uma enorme perda para o mundo musical”, refere Vincent Cheong, proprietário do Live Music Association (LMA). Bowie, diz, conquistou o mundo e agora deixa-o mais pobre.

O trabalho “Blackstar” fecha a história de uma vida. David Bowie despediu-se assim dos fãs. “Esta foi a melhor prenda que David Bowie nos podia deixar, um álbum”, refere Tatiana Lages, uma assumida seguidora do trabalho do artista.

Quais são os teus direitos como ser humano?

Bowie, sendo inglês, não partilha da visão anglo-saxónica do mundo, que é pragmática.

Nasce numa Londres parcialmente destruída pelos raides aéreos alemães e sujeita a um racionamento até 1954.

Bowie fez uma audição para o musical Hair, a primeira peça com nudez integral a estrear em Londres depois do fim da censura. Mas não foi aceite.

A chave está nos anos 70, quando Bowie surge como Ziggy Stardust.

O seu interesse pelo teatro musical era de tal forma que, em 1973, Bowie solicitou à viúva de George Orwell autorização para adaptar o romance 1984 para palco, mas não foi aceite. E foi daí que nasceu o álbum Diamond Dogs (1974), que é um concerto completamente encenado.

Bowie tinha visitado a Factory, de Andy Warhol, em Nova Iorque, onde o seu agente tinha comprado, em 1966, uma gravação de um álbum de Lou Reed and the Velvet Underground que era, também, uma forma completamente diferente de fazer teatro musical.

O que é interessante de analisar são as formas que Bowie encontrou para se fechar do mundo, como quando decidiu ir para Berlim nos anos 70. Na verdade, para ele tudo é representação e essa ideia está já no início da sua carreira.

Bowie foi aluno de Lindsey Kemp, um actor que foi também mimo e não se sabe se tiveram ou não um caso. Mas foi Kemp quem o levou para uma série de filmes onde era sempre type-casted.

A grande diferença de Bowie é que, ao contrário de outros grupos, nos anos 1980, como os Pet Shop Boys, ou agora a Lady Gaga, não teve que preencher qualquer vazio. Ou pelo menos, não o mesmo vazio. Marcel Duchamp fez o mesmo quando, nos anos 1920, deixou de produzir e considerou que o grande gesto criativo era jogar xadrez [publicou, mais tarde, o livro The Art of Chess].

Se o Ziggy Stardust andasse nas ruas de Londres ou de Lisboa, duvido que alguém lhe desse importância. Mas há muitas cidades no mundo em que se o fizesse, teria uma reacção hostil e possivelmente violenta, ou pior.

A influência de Bowie percebe-se na linha da frente de uma das maiores divisões do mundo, que já não é política ou religiosa, mas na verdade, é muito mais fundamental: quais são os teus direitos como ser humano?

Bowie não tem um programa político, mas disse: “eu decido ser isto, e tu decides o que queres”. A grande fractura, hoje, está na diferença entre o indivíduo e os seus direitos. Entre o indivíduo e a liberdade de escolha.

Há uma frase de William Blake que me parece ser adequada para explicar Bowie: alguém que não teve um predecessor, que não vive a par dos seus contemporâneos e não pode ser substituído por qualquer sucessor.

12 Jan 2016

Schoenberg e Bartók, por exemplo

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]alou-se aqui das óperas que têm sido representadas em Macau ao longo da história do F.I.M.M. Adiantou-se que seria prático à iluminação dos espíritos e ao conforto das almas apresentar outro tipo de repertório.

Para lá do F.I.M.M., integrado no Festival de Artes ou na temporada de espectáculos do C.C.M. poder-se-ia optar por mostrar ao público algumas óperas do século XX ou XXI.

Lembrei-me de Erwartung e de O Castelo do Barba Azul, respectivamente de Schoenberg e Bartók, porque existe um artigo de Edward Said sobre um programa duplo, em Nova Iorque, que incluiu estas duas óperas – arranjo que não é invulgar uma vez que são sensivelmente da mesma época e exprimem um universo semelhante.

São dois úteis modelos pois trata-se de peças com um conjunto mínimo de cantores. Erwartung tem apenas uma cantora e a peça de Bartók apenas dois. Posso acrescentar que são duas das minhas óperas preferidas do século passado.

Intercale-se uma pequena nota. Von heute auf morgen, de Schoenberg, a sua única ópera cómica e a primeira obra a utilizar o sistema de 12 tons, tem cerca de uma hora e pede apenas 4 cantores. Glückliche hand, do mesmo compositor, um drama com música, é uma pequena peça de cerca de vinte minutos dividida em 4 cenas que pede apenas um barítono e um coro de seis homens e seis mulheres.*

(Moisés e Arão, a outra das 4 óperas de Schoenberg, é um caso completamente diferente, uma obra em 3 actos – o último incompleto – com um conjunto “normal” de cantores e um coro que implica uma produção de maior peso).

Tanto Erwartung como O Castelo do Barba Azul são peças subtilmente sedutoras pelo que escondem no seu negrume e na sua melancolia. Na peça de Schoenberg nunca percebemos bem o que se passa e qual a responsabilidade da mulher na morte do homem que esta encontra na floresta. Será que este existe ou é ele apenas uma expressão dos tormentos da mulher?

O enigmático Barba Azul acompanha a sua recente mulher ao longo dos corredores do seu lúgubre castelo que, como a peça de Schoenberg, se situa num lugar indeterminado e dominado pelas trevas. A mulher da obra de Schoenberg não tem nome, é apenas die frau/a mulher.

A esta sedução do desconhecido junta-se uma outra – a da sexualidade. Pelos corredores sinistros do castelo do Barba Azul e pelos recessos nocturnos da floresta de Erwartung demonstra-se uma sexualidade enigmática, por vezes fria, por vezes muito excessiva e expressiva.

O gosto pela e o estudo da psicologia (que tem origens num complexo científico, intelectual e artístico em que a cidade de Viena teve um papel nuclear) tornara-se por esta altura uma moda que se estendera ao cinema, ao bailado, à ópera e a outros campos das artes. O mundo misterioso e sedutor da sexualidade, assim como o estudo dos sonhos e do subconsciente informam intensamente este período.

Qualquer destas duas óperas pode ser vista como a descrição de um sonho (Schoenberg diz que Erwartung é uma espécie de pesadelo) em que a sexualidade tem um papel importante.

Erwartung foi apenas representada em 1924 mas havia sido composta em 1909**, nove anos depois da publicação de Interpretação dos Sonhos, de Freud, e de vários outros estudos do mesmo autor, e três anos depois de um controverso livro do filósofo austríaco Otto Weininger (que se suicidou aos 23 anos) sobre sexualidade chamado Geschlecht und Charakter/Sexo e Carácter.

Elektra, de Strauss, estreada em 1909, ano da conclusão de Erwartung, é uma ópera que tem sido igualmente apreciada através da perspectiva psicanalítica. É a época do triunfo da psicanálise, de Freud e de Breuer.

Existe literatura que oferece uma interpretação de Erwartung que liga o texto desta peça directamente a um caso clínico específico – referente a uma paciente que seria parente da autora do libreto – constante em Studien über Hysterie (1895), de S. Freud e Josef Breuer.

Exprime-se um compreensível fascínio por um mundo que se revelara aos poucos nos finais do século XIX e ao longo dos inícios do século XX. Esta é uma obra que tem uma longa carreira de representações até aos dias de hoje e que ilustra à perfeição a inclinação anti-realista, anti-naturalista, simbolista e expressionista que impregnava o grupo de Schoenberg em particular, enquanto demonstra o clima cultural geral prevalente na Áustria e na Alemanha no início do século XX.

O palco e o canto, a ópera e o drama para música, são veículos modelares para a transmissão da transcendência, do misterioso, da sedução labiríntica do interior do indivíduo e do universo dos sonhos e da sexualidade.

Alerte-se que à solista desta peça de Schoenberg se pede um esforço maior. Uma produção com uma cantora que não esteja à altura pode trazer resultados desagradáveis. No entanto, garantida a qualidade, é difícil não nos deixarmos seduzir pelo tormento expressionista desta mulher solitária que parece (nada nesta peça é claro) tentar encontrar, na escuridão da floresta, respostas para o destino do seu amante e do seu amor.

O Castelo do Barba Azul tem seduções semelhantes, um lugar sinistro e soturno onde se cria a expectativa de um desfecho funesto.

A recém mulher do Barba Azul, Judite, pede ao seu marido que lhe abra as 7 misteriosas portas que se encontram no castelo. Por trás de cada uma delas há objectos, jardins, um lago de lágrimas, etc., cobertos de sangue, testemunhos do passado do Barba Azul, um que Judite parece conhecer e querer obsessivamente confirmar, um passado escuro e enigmático sobre o qual Judite, através do poder do Amor, tenta lançar uma luz redentora. Paralelamente, é a sua obsessão em desvendar que a chama ao inevitável engolimento. O Barba Azul, por sua vez, abandona-se, sem conseguir resistir, ao apelo do destino.

Ao aproximarmo-nos da última porta aumenta a tensão da peça, uma de infinitas possibilidades cénicas.

A música, tonal, é sempre misteriosa e inquietante, de uma cor lúgubre e labiríntica. Exige também um esforço grande para os intérpretes que durante cerca de uma hora não param de cantar – praticamente não há partes unicamente orquestrais.***

A extrema concentração em apenas um pequeno episódio da história do Barba Azul (ao contrário do que acontece com Ariane e o Barba Azul, de Dukas, estreada em 1907) ajuda a manter intacto o desassossego que caracteriza a peça, um pouco como acontece com Erwartung, cuja curtíssima duração cria uma focalização feérica, fortemente obsessiva.

Se estas são duas óperas bastante conhecidas muitas outras se compuseram no século XX e XXI de apresentação desejável. Sem Strauss, Schoenberg, Alban Berg, Debussy, Janacek, Hindemith, Krenek, Britten, Henze, Birtwistle, Stockhausen ou John Adams é impossível compreender a evolução de um género musical que tem vindo a ganhar uma importância cada vez maior. Estimo que o número de óperas compostas no século XX e XXI seja, no mínimo, entre 850 a 900.

* foi notado num dos artigos anteriores que existem, nos séculos XX e XXI, muitas óperas de curta duração.
** um ano de brilhos, em que Schoenberg compôs, no Verão e no início do Outono, além de Erwartung op. 17, as Três Peças para Piano op. 11 e as Três Peças Orquestrais op. 16. Duas das óperas mais interessantes deste período, ousadas e enigmáticas também, Salomé e Elektra, de R. Strauss, respectivamente de 1905 e 1909, são testemunho de como a herança cromática wagneriana sofria constantes re-valiações e de como o retrato de mulheres em situações de extrema perturbação carrega uma extrema sedução.
Hofmannsthal estava a ler Studien über Hysterie (1895), de Freud e Breuer, quando escreveu Elektra (cf. 2005, The Cambridge Companion to Twentieth-Century Opera, Ed. Mervyn Cooke, pág.48), um fio intelectual que chega naturalmente a Erwartung.
*** existe uma versão filmada, de 1963, realizada por Michael Powell, muito datada cenicamente (e por isso interessante) e interpretada por Norman Foster e a bela Ana Raquel Satre.

7 Jul 2015